Revisão da convenção de arbitragem da CCEE: perspectivas e debates

Revisão da convenção de arbitragem da CCEE: perspectivas e debates

Por Camillo Giamundo e Joaquim Melo de Queiroz

Recentemente, os agentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica aprovaram a revisão da convenção de arbitragem, documento que regula as regras para a utilização da arbitragem como mecanismo de solução de determinadas disputas. As novas regras atualizam a Convenção Arbitral da CCEE que vigorava desde 2007 e trazem modificações positivas e pontos que merecem avaliação, especialmente no atual cenário de expansão do setor.

É inegável que o setor de energia elétrica vivencia uma euforia. Há uma multiplicação de projetos de geração de energia de fontes renováveis, em boa parte voltados ao atendimento de grandes consumidores que integram a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Este fenômeno se intensificou a partir de 2016, quando se iniciou uma expressiva migração de grandes empresas para o denominado Mercado Livre (Ambiente de Contratação Livre). Neste ambiente, as empresas podem formalizar contratos de compra e venda de energia elétrica diretamente com geradores e agentes comercializadores, desfrutando de maior liberdade para estabelecer volumes, preços, prazos e outras condições comerciais para o seu suprimento. A tendência é que este movimento se intensifique. E a aceleração da transição energética, com a migração de matrizes energéticas estruturadas em fontes de combustíveis fósseis para fontes renováveis, desempenha papel importante nesta mudança.

Nesse cenário de ampliação do número de agentes, espera-se uma majoração natural do número de disputas entre eles e, consequentemente, do número de procedimentos arbitrais. A lógica é cartesiana: quanto maior a quantidade de agentes e de relações contratuais, maior o número de potenciais disputas. Nesta conjuntura, a revisão da Convenção de Arbitragem da CCEE vem em boa hora.

Em 19 de outubro de 2021, foi realizada a 68ª Assembleia Geral Extraordinária da CCEE [1]. Dentre os temas deliberados constou a revisão da Convenção de Arbitragem.

Um grupo de trabalho formado pela CCEE e representantes de todas as associações do setor dedicou-se, desde 2017, a avaliar os principais pontos que demandariam a atualização da convenção arbitral.

O diagnóstico realizado pelo grupo de trabalho apontou quatro eixos principais que justificavam a revisão da norma:

“(I) A falta de competividade entre as Câmaras, dada a atual exclusividade da Câmara da Fundação Getúlio Vargas (FGV);

(II) A possível afetação do mercado decorrente de decisões arbitrais proferidas em processos com questões bilaterais;

(III) A necessidade de consolidar a regra já adotada que fixa as hipóteses em que não se aplica a Convenção Arbitral, decorrentes da própria Convenção de Comercialização (instituída pela Resolução Normativa Aneel nº. 109/2004 e revogada recentemente pela Resolução Normativa Aneel nº 957/2021); e
(IV) Aprimoramentos decorrentes da própria evolução do mercado e da experiência alcançada desde a entrada em vigor da atual Convenção Arbitral.”

A partir desta radiografia, foram indicadas as principais modificações propostas para o novo texto da Convenção Arbitral:

“(I) Pluralidade de Câmaras: elaborou-se uma cláusula em que se previu a possibilidade de os agentes escolherem qualquer Câmara Arbitral que esteja previamente homologada pela CCEE, criando-se competitividade entre Câmaras e flexibilidade operacional para os agentes. Desta forma, após aprovação, será criado um procedimento para a homologação e desabilitação das Câmaras Arbitrais, com a colaboração do mesmo grupo de trabalho que participou da elaboração da nova proposta. O procedimento de homologação/desabilitação será aprovado no âmbito da CCEE e tornado público, sem necessidade de passar por nova Assembleia;
(II) Conflitos arbitráveis: são aqueles definidos na Convenção de Comercialização. A atual Convenção Arbitral replica o texto da Convenção de Comercialização. A proposta de alteração sugere a mera remissão à Convenção de Comercialização, evitando-se que eventual alteração tenha que ser integralmente reproduzida na Convenção Arbitral;
(III) Exceção à via arbitral para solucionar conflitos bilaterais: a alteração proposta tem como objetivo o aprimoramento do texto vigente uma vez que a redação atual deixava os agentes em dúvida quanto a esta exceção. O texto foi aprimorado para esclarecer que a Convenção Arbitral não se aplica aos conflitos bilaterais que não afetam direitos de terceiros e, por consequência, não repercutem nas operações da CCEE;
(IV) Exceção à via arbitral para cobrança, pela CCEE, de valores inadimplidos, inclusive penalidades: alterou-se a Convenção Arbitral para consolidar essa regra já adotada pela CCEE. Os dispositivos inseridos ratificam a utilização da via judicial pela CCEE para cobrança de valores inadimplidos por agentes ou não agentes, inclusive penalidades;
(V) Mecanismo de Proteção ao Mercado: propõe-se mecanismo apto a garantir que o Tribunal Arbitral exija garantias das partes em relação aos efeitos financeiros das decisões arbitrais que afetem terceiros. A proposta permite à CCEE requerer ao Tribunal Arbitral a prestação de garantias idôneas nos casos em que a operacionalização da decisão venha a impactar outros agentes que não estejam envolvidos no conflito;
(VI) Suspeição de árbitros e prazo de quarentena: buscou-se ampliar o rol de potenciais árbitros a serem selecionados, com a alteração das hipóteses de impedimento por suspeição. A sugestão de modificação permite que os critérios de afastamento dos árbitros sejam analisados pelas partes, as quais poderão recusar ou consentir com a indicação do árbitro diante da revelação efetuada. Em relação a ex-prestador de serviço, ex-colaborador e ex-consultor de umas das partes, o prazo da quarentena será reduzido de dois anos para seis meses;
(VII) Divulgação de banco de jurisprudência: com o objetivo de dar previsibilidade sobre as decisões arbitrais, a alteração propõe criar repositório público de ementas por parte das Câmaras Arbitrais, respeitando a confidencialidade das partes envolvidas; e
(VIII) Regras de transição: a inserção de cláusulas específicas sobre a vigência da Convenção Arbitral a partir da homologação pela Aneel. Além disso, também é reforçada em cláusula específica que a utilização da via judicial pela CCEE para cobrança de valores inadimplidos por agentes ou não agentes, inclusive penalidades, é a regra estabelecida desde a vigência da atual Convenção Arbitral e que é ratificada pela nova Convenção Arbitral”.

As alterações propostas convergem para temas candentes e atuais debatidos pela comunidade arbitral: publicidade de decisões, confidencialidade e dever de revelação do árbitro.

Especificamente em relação às disputas no setor de comercialização de energia elétrica, dois pontos demandam reflexão: a definição clara dos conflitos arbitráveis e as hipóteses de exceção à via arbitral.

A delimitação dos conflitos arbitráveis é disposta na cláusula 1ª da minuta da nova Convenção de Arbitragem:

“CLÁUSULA 1ª. Nos termos da legislação e regulamentação vigentes, são considerados conflitos (‘CONFLITOS’) passíveis de resolução através da Arbitragem aqueles definidos na Convenção de Comercialização vigente.”

A solução alvitrada é elegante, ao contornar a necessidade de contínua atualização da convenção de arbitragem, mas pode ensejar eventuais interpretações divergentes quanto ao seu efetivo alcance. Atualmente, os conflitos que devem ser objeto de solução pela via arbitral são elencados no artigo 44 da Resolução Normativa Aneel nº 957/2021:

“Artigo 44. Os Agentes da CCEE e a CCEE deverão dirimir, por intermédio da Câmara de Arbitragem, todos os conflitos que envolvam direitos disponíveis, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, nas seguintes hipóteses:
I – conflito entre dois ou mais Agentes da CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da Aneel ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela;
II – conflito entre um ou mais Agentes da CCEE e a CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da Aneel ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela; e
III – sem prejuízo do que dispõe cláusula específica nos CCEARs, conflito entre Agentes da CCEE decorrente de Contratos Bilaterais, desde que o fato gerador da divergência decorra dos respectivos contratos ou de Regras e Procedimentos de Comercialização e repercuta sobre as obrigações dos agentes contratantes no âmbito da CCEE”.

Diante do desenvolvimento do mercado, e maior complexidade de suas estruturas de controle, a definição objetiva das matérias arbitráveis pode vir a ensejar questionamentos. Um exemplo prático e atual: eventuais medidas preventivas para mitigação de riscos de inadimplência, conforme proposta recentemente apresentada pela CCEE [2], estariam sujeitas à discussão pela via arbitral? Esta é uma questão a ser ponderada, inclusive em razão da Estrutura de Salvaguardas Financeiras com mecanismos mitigadores de perdas decorrentes da inadimplência no Mercado de Curto Prazo, também proposta na aludida Nota Técnica da CCEE. A conformação destas estruturas propostas poderia gerar questionamento acerca do que efetivamente deveria ser objeto de escrutínio pela via arbitral.

De outra parte, a precisa delimitação do fato gerador para o enquadramento dos conflitos previstos no inciso III do artigo 44 da REN 957/2021 poderia deflagrar interpretações dissonantes, especialmente em situações em que convém ao requerido postergar a decisão sobre o conflito.

De todo modo, e a despeito de questionamentos que possam surgir, caberá sempre ao tribunal arbitral realizar esta avaliação, em consonância com o princípio kompetenz-kompetenz, referendado inclusive em recente precedente do Superior Tribunal de Justiça [3]. Em relação à exceção à via arbitral nas demandas propostas pela CCEE, em que se exija o pagamento de valores inadimplidos de agentes, deve ser avaliada se de fato esta seria a solução mais adequada:

“Parágrafo 3º. Esta CONVENÇÃO não se aplica às demandas em que a CCEE exija valores inadimplidos de agentes ou não agentes, incluindo penalidades, as quais são promovidas exclusivamente perante o Poder Judiciário”.

A justificativa para esta exceção encontra-se disposta no parágrafo 4° da cláusula 1ª:

“Parágrafo 4º. Com base no artigo 113, §2º, e no artigo 421-A, I, Código Civil, as partes declaram que a CCEE, ao exigir valores inadimplidos, age na condição de substituta processual da coletividade, com base nos artigos 18, Código de Processo Civil, artigo 4º, Lei n. 10.848/2004, artigo 2º, VII, do Decreto 5.177/2004, artigo 3º do Decreto 5.163/2004; artigo 2º, §2º, da Resolução Normativa/ANEEL 545/2013; em razão disso, as respectivas ações serão propostas perante o Poder Judiciário”.

Em primeiro lugar, há uma possível incongruência nesta sistemática tendo em vista que a inadimplência de um determinado agente ocasionaria justamente efeitos às operações da CCEE, o que atrairia a incidência da regra prevista no parágrafo 1ª da cláusula 1ª, reafirmando a jurisdição arbitral para a solução do conflito:

“Parágrafo 1º. Esta CONVENÇÃO não se aplica a conflitos entre Agentes da CCEE, decorrentes de contratos bilaterais, que não afetem direitos de terceiros estranhos ao negócio jurídico objeto do conflito e, por consequência, não repercutem nas operações da CCEE”.

Em segundo lugar, em razão dos predicados inerentes à arbitragem, a resolução de disputas dessa natureza pelo procedimento arbitral poderia permitir maior celeridade para a ulterior recuperação de eventual crédito dos agentes impactados, caso confirmado pelo tribunal arbitral (ainda que sua satisfação dependa de posterior cumprimento de sentença arbitral).

Por fim, o fato de a CCEE figurar como substituta processual dos demais agentes credores (caso assim se repute a sua atuação [4]), ou mesmo como representante processual, não a impediria, a priori, de formular o requerimento de instauração do procedimento arbitral em seu próprio nome, desde que expressamente autorizada por eles.

Esta é uma questão delicada e que, de certa forma, se correlaciona com a necessidade de aprimoramento da sistemática de negative option usualmente empregada pela CCEE. De acordo com este procedimento, a CCEE encaminha aos agentes impactados comunicado solicitando a manifestação quanto ao seu desinteresse em ser representado pela Câmara em futura demanda de cobrança. Em caso de ausência de resposta do agente, é presumida a outorga de autorização à CCEE para representá-lo.

Existem questionamentos quanto a este formato sob o fundamento de que a CCEE poderia representar os agentes apenas nas hipóteses de manifestação expressa, e positiva, de seu associado conferindo-lhe poderes para tanto.

De outra parte, argumenta-se que a legitimidade da CCEE estaria escorada nos dispositivos assinalados no parágrafo 4° da cláusula 1ª da minuta da Convenção de Arbitragem.

De todo modo, cabe a reflexão quanto à possibilidade de modificação da Convenção de Arbitragem para que a CCEE promova a cobrança, em nome de seus associados, por meio de procedimento arbitral, sobretudo diante da celeridade deste mecanismo de solução de disputas.

Em suma, as propostas de atualização da Convenção de Arbitragem da CCEE são positivas e devem ser louvadas. Dentre elas, destaca-se a possibilidade de utilização de outras Câmaras, o que ampliará a autonomia dos agentes diante de maior número de opções. Deve ser saudada ainda a proposta de instituição de um repositório de precedentes, o que conferirá maior segurança jurídica aos agentes em suas tomadas de decisões, na medida em que poderão mapear melhor a orientação das Câmaras sobre determinados conflitos do setor.

Por fim, cabe assinalar que proposta de atualização da Convenção de Arbitragem encontra-se atualmente em análise pela Aneel. Espera-se que a sua homologação ocorra de forma célere, especialmente diante da corrida para a implementação de novas usinas de geração de fontes renováveis, deflagrada pela janela regulatória aberta pela Lei nº 14.120/2021. Estes empreendimentos são em boa parte financiados por contratos de comercialização de energia elétrica (Power Purchase Agreements — PPAs). Há, portanto, a possibilidade de expressivo número de conflitos em breve, vinculados a estes contratos. Seria recomendável que a nova Convenção de Arbitragem já estivesse em vigor para disciplinar estas disputas.

NOTAS
[1] https://www.ccee.org.br/documents/80415/919507/ATA%2068%C2%AA%20AGE_19_10_2021.pdf/995a9de2-5757-1afa-e32e-d8cf6a8b0e2d
[2] Conforme a Nota Técnica NT CCEE 06735/2021, de 16 de dezembro de 2021:
https://www.ccee.org.br/documents/80415/919440/Nota%20T%C3%A9cnica%20CCEE%20-%20CCEE06735-2021_site.pdf/79bd0de3-916b-c75b-e545-0b8ecc709144
[3] https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=140974127&registro_numero=201800037380&peticao_numero=201900612834&publicacao_data=20211210&formato=PDF
[4] Existe divergência quanto à atuação da CCEE como substituta processual de seus associados, conforme decisões proferidas no Recurso Especial nº 1.511.140/PR: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=123096605&registro_numero=201500083740&peticao_numero=202000345744&publicacao_data=20210318&formato=PDF

Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2022

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico

Direito da Infraestrutura: retrospectiva de 2020 e perspectivas para 2021

por Giuseppe Giamundo Neto e Christian Fernandes Rosa

O Direito da Infraestrutura, sempre é bom lembrar, congrega diversos ramos jurídicos voltados à estruturação e execução de projetos com relevante impacto no desenvolvimento nacional. Sob a área, estão setores como o de logística e transportes, telecomunicações e energia, saneamento básico e resíduos sólidos. A evolução dessas atividades, cuja organização é competência da União, dos estados ou dos municípios, é marcador relevante da maturidade institucional do País, pois além da evidente relevância social, demandam grandes investimentos, remunerados ao longo de décadas de exploração – e fundamentais ao desenvolvimento nacional.

Sob a perspectiva do aprimoramento do cenário institucional brasileiro, alguns eventos marcaram o setor de infraestrutura ao longo de 2020.

Em 2019, o modesto crescimento de 1,1% do PIB impunha a 2020 a necessidade de rever o quadro normativo de áreas ligadas à infraestrutura e, ainda, concretizar ações governamentais que pudessem viabilizar investimentos públicos e privados na estrutura de prestação desses serviços, mitigando os conhecidos gargalos ao crescimento e competitividade.

No campo das revisões normativas, contudo, algumas iniciativas de grande relevância pouco avançaram. Havia expectativa de que fosse enfim concluída a análise da Nova Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos, em substituição à lei de 1993, parâmetro básico para todas as contratações realizadas pelo Poder Público. A norma regulamenta a contratação dos agentes privados interessados em realizar obras públicas, e tem aplicação àqueles que pretendem investir em infraestrutura ou explorar os serviços correlatos. O projeto da nova lei promove avanços no procedimento de seleção de propostas e moderniza o regime jurídico dos contratos. É algo a ser monitorado no próximo ano.

De outro lado, no curso de 2020, foi promulgada a lei do Novo Marco do Saneamento Básico. Trata-se de uma das maiores novidades neste setor desde que, em 2013, o Supremo Tribunal Federal foi levado a intervir nas controvérsias entre estados e municípios quanto a quem compete organizar ou delegar esses serviços à operação privada nas Regiões Metropolitanas. A lei aprovada estabeleceu novos ditames para a gestão associada destes serviços, quando prestados em um esforço conjunto entre diferentes entes políticos – vários municípios vizinhos, por exemplo. E deixou de condicionar as iniciativas de governadores e prefeitos à aprovação pelas respectivas casas legislativas, reduzindo o controle político, mas agregando celeridade aos projetos na área.

Além disso, o novo Marco do Saneamento atribuiu relevância focal à concessão como regime contratual aplicável ao desenvolvimento desses serviços por terceiros, notadamente pelos investidores privados. Consolidou assim um regime jurídico bastante conhecido pelos agentes de mercado e que vinha sendo timidamente empregado para viabilizar investimentos nos equipamentos de saneamento. A aposta é de que as novas regras acelerem os investimentos públicos (sob a associação de estado e municípios), bem como viabilizem o crescimento da participação privada no setor, ao elevar a escala dos projetos e diluir os riscos desses aportes financeiros, de grande vulto.

Para caracterizar a trajetória do setor de infraestrutura ao longo de 2020, é preciso também registrar as intercorrências no setor elétrico, em que circunstâncias ainda a apurar deixaram todo um Estado brasileiro sem acesso a um serviço público essencial, levando inclusive ao inusitado afastamento judicial da diretoria de uma agência reguladora federal. O apagão, que acometeu esse setor conhecido como um dos mais bem organizados, revela o quanto ainda se tem a avançar em termos de controle de riscos e incentivo de boas práticas por parte das prestadoras privadas de serviços públicos sobre infraestrutura.

E ainda houve a epidemia de Covid-19. Neste campo, o setor de transportes foi aquele que mais se expôs às consequências da crise sanitária instalada a partir de fevereiro. A demanda pelos serviços rodoviários e aeroportuários, em especial, foi impactada pela redução recomendada de deslocamentos, bem como pelas restrições impostas por outros países, estados e municípios.

Dados da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias registraram, de janeiro a outubro, uma queda de 14,9% no fluxo de veículos nas estradas sob gestão privada. Diante desse decréscimo, quase três vezes maior que a redução estimada para a economia brasileira (PIB) neste ano, as instituições responderam. A Advocacia-Geral da União reconheceu, em parecer jurídico próprio, que a epidemia é fato de desequilíbrio nos contratos de concessão, o que significa dizer que, em alguma medida, os investidores privados poderão pleitear a recomposição das perdas que comprovadamente tiveram em razão desse evento imprevisto. Isso mitiga a percepção de riscos e aumenta a atratividade de licitações futuras, como da Rodovia Presidente Dutra.

A expectativa é de um novo ano mais promissor. No setor aeroportuário, muito afetado pela epidemia, bons frutos são esperados para o ano de 2021. De um lado, o aumento da capacidade de operação deve ser perceptível à medida em que forem entregues as obras previstas nos contratos da 4ª e 5ª rodadas de concessões aeroportuárias, em instalações muito importantes como as de Salvador, Recife e Cuiabá. De outra parte, os estudos preparatórios para a 6ª rodada, que inclui a concessão de aeroportos como os de Goiânia e Curitiba, já foram ajustados à nova realidade da demanda e o processo de escolha dos parceiros privados deve ser lançado já nos primeiros meses de 2021.

Merece ainda destaque a expectativa quanto ao leilão de novas frequências de telefonia móvel. A seleção de propostas para a operação do 5G está prevista para o primeiro semestre de 2021 e vem sendo conduzida pela Agência Nacional de Telecomunicações. A Agência estará sob o foco das discussões ao longo do próximo ano, já que poderá ter sua competência ampliada para também regular os serviços postais, caso avance a iniciativa de desestatização dos Correios, conforme projeto recentemente apresentado ao Congresso Nacional.

Os percalços de 2020 exigiram um ajuste quanto às prioridades e potencial econômico de alguns projetos de infraestrutura, mas em nada alteraram a relevância de investimentos públicos e privados no setor, a serem viabilizados por arranjos normativos e práticas regulatórias consistentes. Em 2021, o setor de infraestrutura pode passar a liderar a retomada do crescimento econômico. É preciso se comprometer com a concretização desse potencial.

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 10.12.2020.

Justiça rejeita argumento de covid-19 e mantém penhora

O Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ-SE) negou pedido de um hotel para a suspensão de penhora on-line efetuada para o pagamento de uma dívida contraída em 2011. O desembargador Cezário Siqueira Neto, em decisão monocrática, não aceitou o argumento de crise financeira em razão da pandemia de covid-19.

A penhora solicitada por uma empresa que fornece enxovais é de cerca de R$ 77 mil. O hotel questionava na Justiça o fato de o bloqueio ter sido feito em valor superior à dívida, de R$ 159 mil. Aproveitou para pedir a retirada da penhora em decorrência da redução de suas atividades com o coronavírus.

De acordo com o processo (nº 202000708940), o hotel está sem faturar qualquer valor e sua operação completamente parada possui um custo de manutenção superior a R$ 1 milhão. Acrescenta que, nesse momento de crise, suas ações estariam voltadas para manter seus 230 postos de trabalho.

No pedido alega que, mesmo após a adoção de todas as medidas de socorro oferecidas pelo governo federal por meio da Medida Provisória (MP) nº 927, sua folha de pagamento ainda teria um custo de R$ 225 mil, o que evidenciaria a essencialidade do valor bloqueado para pagá-la.

Na decisão, o desembargador Cezário Siqueira Neto reconhece que, a despeito das dificuldades financeiras da empresa diante do quadro mundial da pandemia, deve-se priorizar a figura do credor que “por certo possui folha de pagamento de funcionários, despesas mensais de manutenção de sua empresa, pagamentos de tributos e todas as outras séries de gastos inerentes às empresas”.

O julgador destaca que a justificativa de passar, na atualidade, por um momento de crise financeira, em razão da pandemia, não convence, pois “o agravante desde o ano de 2011 teve todas as oportunidades para saldar seu débito e não o fez”.

Ele acrescenta que não há previsão legal de impenhorabilidade de ativos em decorrência de crise financeira. Para o magistrado, a situação atual exige mudanças, reinventando-se conceitos, forma de rever condutas, não apenas para as pessoas físicas, mas as jurídicas também.

Segundo o advogado que assessora a empresa têxtil, Philippe Ambrosio Castro e Silva, do Giamundo Neto Advogados, trata-se de um processo que se arrasta há anos. A Justiça, afirma ele, vinha tentando vários caminhos para saldar a dívida. Essa dívida é antiga e nada tem a ver com a pandemia. “A situação é conhecida há muito tempo. A empresa não poderia se valer desse argumento agora para se livrar das suas obrigações”, diz.

Para o advogado, a decisão foi muito coerente porque o magistrado não se sensibilizou com o argumento da crise decorrente da pandemia. “O processo no Brasil já demora tanto que a Justiça não pode cair em casuísmos para que mais uma vez o processo não tenha o fim que se espera, que é o pagamento do credor.”

O advogado que assessora o hotel no processo, Marcio Macedo Conrado, afirma que respeita a decisão, porém já recorreu. “Muito embora se trate de uma dívida antiga, o certo é que a penhora recaiu neste momento de pandemia em que hotel teve suas atividades paralisadas e terá que honrar seus compromissos como salários, tributos etc”. Conrado afirma que o pedido não significa que a empresa não deseja pagar a dívida.

No entendimento do advogado Helder Moroni Câmara, do escritório PMMF Advogados, a alegação de impossibilidade de penhora por ocorrência de um fato extraordinário, como a covid-19, só poderia ter cabimento se colocasse uma parte em grande vantagem, em prejuízo da outra que estaria em situação de enorme desvantagem.

Para Câmara, ambos estão na mesma posição e sofrem igualmente o prejuízo decorrente da crise, especialmente tendo em vista que a dívida é muito anterior à ocorrência do fato extraordinário. Ele acrescenta que não foi o fato extraordinário o causador da inadimplência, que levou à penhora. “A dívida já existia há muito tempo e não pode ser colocada na conta da covid-19.”

 

Reportagem originalmente publicada por Adriana Aguiar, do jornal Valor Econômico, em 24.04.2020.

A possibilidade de reequilíbrio econômico financeiro de contratos públicos em decorrência da variação cambial agravada pela crise do novo coronavírus

por Camillo Giamundo

Contratos administrativos baseados em moedas estrangeiras podem ser revistos para fins de reequilíbrio econômico-financeiro em situação de excepcional variação cambial

Não é incomum, principalmente em contratos firmados com o Poder Público envolvendo empreendimentos de infraestrutura, insumos e bens importados, que o orçamento e a proposta comercial do particular contratado estejam fixados nos valores do dólar ou do euro.

Na maioria das vezes, em tais situações, a flutuação da variação cambial dentro dos patamares normais de volatilidade deve ser absorvida pelo contratado, restando a ele arcar com os riscos do negócio e os custos decorrentes de sua atividade empresarial.

Todavia, em situações de imprevisibilidade ou de previsibilidade cujas consequências sejam incalculáveis, a onerosidade excessiva que a alta da cotação da moeda estrangeira cause a um particular contratado permite, conforme precedentes jurisprudenciais, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com o Poder Público.

É exatamente a situação que se verifica, no Brasil, no atual cenário econômico decorrente da pandemia do COVID-19.

Segundo o Banco Central, o Brasil encerrou o ano de 2019 com a cotação de compra do dólar no valor de R$ 4,03 e o euro no valor de R$ 4,52 (31/12/2019), época em que o coronavírus sequer era uma preocupação mundial, sendo apenas uma noticiada epidemia local da China. De dezembro de 2019 ao final de janeiro de 2020, a cotação de ambas as moedas deu um salto de aproximadamente vinte centavos, encerrando o dólar, no primeiro mês do ano, a R$ 4,26 e o euro a R$ 4,72 (31/01/2020).

As moedas seguiram forte tendência de alta no mês de fevereiro, com significativa elevação a partir da confirmação do primeiro caso de coronavírus no país, noticiado em 26/02[1], com dólar a R$ 4,47 e euro a R$ 4,91. Especialistas já admitiam a hipótese da moeda americana na casa dos R$ 5,00, o que veio a ser confirmado em 17 de março, que encerrou o dia na cotação de R$ 5,04, data em que o país já contabilizava 349 pessoas infectadas pelo novo vírus e as Bolsas europeias despencavam para o menor nível desde 2012, enquanto a pandemia de coronavírus se alastrava pela Europa[2].

O mês de abril não fugiu da tendência dos meses anteriores, e encerrou a primeira semana com o dólar cotado a R$ 5,29 e o euro a R$ 5,72.

Vê-se, portanto, que da última cotação de 2019 das moedas estrangeiras até os primeiros dias de abril, houve alta de aproximadamente 31% para o dólar, e pouco mais de 26% para o euro.

Em termos práticos, em apenas três meses a variação das moedas significou um indubitável impacto nas transações comerciais internacionais e, para o objetivo do presente artigo, relativo desequilíbrio nos contratos públicos que tenham sido firmados na base orçamentária estrangeira, na ordem de aproximadamente 30%.

Situações como a presente reclamam a aplicação da teoria da imprevisão, que incide na ocorrência de fatos externos ao contrato, imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, que impactam o equilíbrio econômico-financeiro de forma alheia à vontade de ambas as partes contratuais.

Para exemplificar, o Tribunal de Contas da União, em 05/07/2017, por meio do Acórdão 1.431/2017, sob relatoria do Ministro Vital do Rêgo, decidiu sobre a possibilidade do reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos em razão de variações cambiais, estabelecendo novos parâmetros e definições, especificamente nos casos de contratos que tenham por objeto principal a prestação de serviços executados no Brasil, com a característica de importação de bem ou serviço. Naquela decisão, o TCU reconheceu que a variação cambial inesperada e significativa pode ser suficiente para ensejar eventual reequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado, com a limitação de que tal procedimento se dê exclusivamente em relação aos insumos humanos e materiais adquiridos na localidade de prestação dos serviços.

De acordo com o Relator, três são os critérios para considerar a variação cambial um fator apto a ensejar a recomposição de preços em contratos públicos: (1) constituir-se em um fato com consequências incalculáveis, ou seja, cujas consequências não sejam passíveis de previsão pelo gestor médio quando da vinculação contratual; (2) ocasionar um rompimento severo na equação econômico-financeira impondo onerosidade excessiva a uma das partes. Para tanto, a variação cambial deve fugir à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante; e (3) não basta que o contrato se torne oneroso, a elevação nos custos deve retardar ou impedir a execução do ajustado, como prevê o art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993.

O Superior Tribunal de Justiça, em caso análogo, também decidiu pela indenização do particular contratado, por conta da desvalorização cambial da moeda brasileira em 1999. No Recurso Especial nº 1.433.434, o Ministro Sérgio Kukina destacou que a mudança “abrupta” na política cambial, naquele caso concreto, caracterizou-se como situação extraordinária, sendo justa a repactuação dos termos ou, visto que o contrato já tinha sido cumprido, a indenização pelas perdas sofridas.

E nem poderia ser diferente. o dever de o Poder Público ressarcir o contratado pelo desequilíbrio da equação econômico-financeira da avença decorre dos preceitos constitucionais, trazidos pelo artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal, que assegura ao particular que contrata com a Administração Pública a manutenção “das condições efetivas da proposta”, bem como o artigo 65 da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), por sua vez, dispõe sobre a possibilidade de alteração dos contratos administrativos “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da administração para a justa remuneração (…) objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato”.

Ademais, o direito ao reequilíbrio decorre, igualmente, de outro princípio jurídico: o que proíbe o enriquecimento sem causa, expressamente consignado no artigo 884, do Código Civil, visto que a Administração Contratante se beneficiaria dos serviços prestados pelo privado sem, contudo, remunerá-lo adequadamente.

Não há dúvidas de que o atual cenário enfrentado pelo país pode significar, em muitos contratos públicos, a aplicação da teoria da imprevisão, haja vista a alta volatilidade e crescimento da moeda americana e do euro frente ao real, de modo que, a depender do caso concreto, o restabelecimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato é verdadeiro dever do Poder Público e direito do particular contratado, cabendo a adoção das medidas jurídicas necessárias para o reconhecimento de tal garantia, caso haja impedimento pela via administrativa e voluntária.

[1] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-confirma-1-caso-de-coronavirus-medidas-de-cuidado-continuam-as-mesmas,70003210635

[2] https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2020/03/17/bolsas-europeias-abrem-em-alta.htm

 

Artigo originalmente publicado no Portal Fator Brasil, em 28.04.2020.

Impressões sobre a Medida Provisória nº 944/2020 – Financiamento da Folha Salarial

por Luiz Fernando Plens de Quevedo, Renata Olandim Reis e Diogo Pozza Parpineli

 

Diante da atual situação de pandemia e da grave crise econômica decorrente das medidas de isolamento e suspensão de atividades empresariais necessárias, foi editada nova Medida Provisória em 03.04.2020, MP 944/2020, instituindo o Programa Emergencial de Suporte a Empregos. Na perspectiva do Direito do Trabalho, a MP 944/2020 prevê a disponibilização de linha de crédito específica para financiamento da folha de pagamento, sob a condição de que sejam mantidos os contratos de trabalho pelo prazo equivalente aos meses de folhas de pagamento financiadas.

Conforme o artigo 1º da MP, o programa instituído se destina à realização de operações de crédito com “empresários, sociedades empresárias e sociedades cooperativas”, com a finalidade de pagamento de folha salarial de seus empregados. Excluem-se, expressamente, as sociedades de crédito, e limita a possibilidade de adesão ao programa aos empregadores com “receita bruta anual superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) no exercício de 2019”.

Em síntese, o Governo Federal promove, por meio do Programa Emergencial, linha de crédito destinada ao financiamento de até dois meses da folha salarial das empresas enquadradas dentro dos limitadores acima indicados, definido pela receita bruta alcançada em 2019. A totalidade da folha de pagamento poderá ser financiada, para todos os empregados, indiscriminadamente, limitado ao valor de até dois salários mínimos mensais por empregado da empresa que aderir ao Programa.

A possibilidade de adesão ao Programa Emergencial, contudo, está condicionada aqueles empregadores que, necessariamente, têm sua folha de pagamento processada por Instituição Financeira que, espontaneamente, tenha exercido a faculdade de participar do Programa. A linha de crédito será concedida “conforme políticas próprias de crédito e poderão considerar eventuais restrições em sistemas de proteção ao crédito na data da contratação e registros de inadimplência no sistema de informações de crédito mantido pelo Banco Central do Brasil nos seis meses anteriores à contratação, sem prejuízo do disposto na legislação vigente.”

As operações de crédito contratadas serão custeadas com recursos próprios das instituições financeiras participantes no limite de apenas 15% do valor do financiamento. O restante do valor financiado, 85%, será custeado com recursos da União – que, para tanto, transferiu para o BNDES R$ 34.000.000.000,00 (trinta e quatro bilhões de reais).

Em contrapartida, a empresa aderente ao Programa assume as seguintes obrigação: “I – fornecer informações verídicas; II – não utilizar os recursos para finalidades distintas do pagamento de seus empregados;” e “III – não rescindir, sem justa causa, o contrato de trabalho de seus empregados no período compreendido entre a data da contratação da linha de crédito e o sexagésimo dia após o recebimento da última parcela da linha de crédito”. Será da Instituição Financeira concedente do crédito a responsabilidade pela fiscalização do cumprimento das obrigações pela empresa.

Dessa forma, além da obrigatoriedade de fornecimento de informações verídicas, comum a todos os tipos de contratos, os empregadores que aderirem ao Programa estarão obrigados a destinar o crédito, única e exclusivamente, para pagamento da folha salarial. É vedada, por exemplo, a aplicação dos recursos para o fomento das atividades da empresa, ainda que se comprove a utilidade deste fomento à manutenção dos empregos, fim último da MP 944/2020.

A contrapartida da empresa que se socorrer da linha de crédito será a manutenção dos contratos de trabalho de seus empregados, desde a data da contratação da linha de crédito até o sexagésimo dia após o recebimento da última parcela da linha de crédito. Ou seja, limitado o Programa a socorrer até dois meses da folha de pagamento, a garantia de emprego será de, no máximo, quatro meses, contando desde a obtenção do crédito.

Vê-se, portanto, que, como forma de proteção ao emprego, a MP 944/2020 prevê, como contrapartida à concessão do crédito, a garantia de emprego de todos os empregados pelo período equivalente ao período em que o empregador beneficiou-se da linha de crédito. Além da garantia de emprego individual de cada empregado, ao violar a obrigação de manutenção dos empregos, a rescisão de apenas um contrato de trabalho, sem justificativa, implica no vencimento antecipado da dívida. Nesses termos, verifica-se que a contrapartida destinada aos empregadores detém um componente individual, a garantir os salários pelo período, e um componente coletivo, ao prever o vencimento antecipado do valor financiado.

Por fim, o art. 5º da MP 944/2020, define as condições da linha de crédito promovida pelo Programa Emergencial de Suporte a Empregos, delimitando taxa de juros de 3,65% ao ano, com prazo de pagamento em até 36 meses, exigíveis após carência de 6 meses para início do pagamento, com capitalização de juros durante todo o período.

Trata-se de mais uma medida oferecida pelo Governo Federal como forma de promover o enfrentamento dos impactos das medidas adotadas para contenção da pandemia, beneficiando a manutenção dos contratos de trabalho, em atenção aos anseios e pressões sociais para concessão de auxílio aos trabalhadores e empregadores. Soma-se, assim, às medidas autorizadas pelas Medidas Provisórias 927, 936 e Portaria n° 139, também de 03.04.2020, editada pelo Ministério da Economia, que posterga os recolhimentos previdenciários e o pagamento do PIS/COFINS.

Covid-19 e Direito do Consumidor: revisão contratual, externalidades e perspectivas

por Geovanne Lucas da Silva Ribeiro

É de conhecimento público o alarmante cenário econômico e social causado pela pandemia de Covid-19, justificando a necessária comunhão de esforços entre União, estados, municípios e a sociedade em geral, com o objetivo de atenuar os efeitos da crise sanitária que se apresenta, sem perder de vista a crise econômica que se aproxima.

Especificamente no tocante às medidas que vêm sendo adotadas pelo Poder Público, preocupa os efeitos das diversas restrições que impactam direta e negativamente a atividade empresarial, a exemplo da implantação de medidas de isolamento social e recentes determinações para suspensão de obras e serviços e limitação do funcionamento de estabelecimentos comerciais.

Por consequência da fragilização da atividade empresarial, emergem-se grandes desafios aos contratos de consumo, seja pela substancial alteração das circunstâncias fáticas que motivaram a decisão de contratar e a composição do preço, seja pela influência de fatores externos, como os mencionados atos de governo, que acabam por impedir ou dificultar a execução total ou parcial do contrato ou reduzir a utilidade do bem ou serviço.

Essa circunstância agrava o já intricado desafio brasileiro de equacionar a sobrevivência e desenvolvimento de empresas com a proteção ao consumidor, missões igualmente importantes aos olhos da Constituição Federal de 1988.

De um lado, é notório que o ordenamento jurídico brasileiro lança sobre o consumidor a presunção de hipossuficiência perante o fornecedor, a justificar a possibilidade de intervenção do Estado nas relações entre eles travadas. Esse fenômeno, que se designa “dirigismo contratual”, sustenta o elevado índice de revisões judiciais de contratos de consumo por tribunais estaduais Brasil adentro.

De outro lado, a valorização da livre iniciativa pela Constituição Federal traduz o reconhecimento de que a empresa, enquanto instituição fundamental no contexto capitalista, comporta interesses de múltiplos entes e setores relevantes, categorizados pela moderna teoria da administração como “stakeholders externos”, incluindo fornecedores, trabalhadores, Estado-Fisco, membros da comunidade onde a empresa se instala, e, por certo, os próprios consumidores.

Reconhecido que a racionalidade pós-moderna deslocou a preservação da empresa para o patamar de interesse público, é certo que, em tempos de Covid-19, a revisão de contratos de consumo demanda o redobro de cautela e sensibilidade por parte dos órgãos administrativos e judiciais, sob pena de agravamento da sustentabilidade empresarial e potencialização da iminente crise econômica.

Cite-se, a título exemplificativo, o setor turístico, provavelmente o mais rapidamente impactado pelos efeitos da pandemia. Entre os meses de janeiro a novembro de 2019, o índice de atividades turísticas no Brasil cresceu 2,6%, conforme Pesquisa Mensal de Serviços (PMS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contudo, em decorrência do fechamento de aeroportos, cancelamentos de voos e suspensão das atividades e de deslocamento em muitas unidades da Federação, assistiu-se o drástico comprometimento da sustentabilidade empresarial de hotéis e agências de viagens.

A demonstrar os impactos da crise no setor para a economia do País, apura-se que a atividade turística respondeu por aproximadamente 8% do Produto Interno Bruto (PIB) e por 6,9 milhões de empregos — que corresponde a 7,5% do total de trabalhos gerados no país, em 2018.

Em resposta à crescente alta de conflitos consumeristas no contexto da pandemia, a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON), as Fundações de Proteção e Defesa do Consumidor (PROCONs) e outros órgãos integrantes do Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor, fomentam a utilização de meios autocompositivos como a negociação e a mediação, com objetivos voltados à preservação dos contratos e mitigação dos danos à atividade empresarial.

Nesse sentido, observa-se uma grande campanha governamental de incentivo ao cadastro de empresas junto à plataforma “consumidor.gov.br” — um canal eletrônico de mediação que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas em busca de soluções alternativas e consensuais de conflitos de consumo.

Trata-se de serviço público e gratuito de estímulo à celebração de acordos que, se bem utilizado por empresas e consumidores, tem o efetivo condão de reduzir os ônus decorrentes da judicialização.

Outro fato relevante é que o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) já se manifestaram pelo enquadramento da Covid-19 como evento de “força maior”, apto a excluir ou atenuar a responsabilidade do fornecedor nos termos artigo 393 do Código Civil.

O Código de Defesa do Consumidor, fundado na teoria do risco da atividade, estabeleceu, para os fornecedores, como regra geral, a responsabilidade civil objetiva. A despeito de não existir previsão expressa da força maior no rol de hipóteses elencadas no artigo 14 §3º do CDC, a jurisprudência pátria sedimentou entendimento no sentido de que tal excludente é aplicável aos contratos de consumo.

A esse respeito, na oportunidade do julgamento do REsp nº 120.647-SP, o eminente ministro Eduardo Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, assinalou que “o fato de o art. 14, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor, não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocados.”

Com efeito, diante de um contrato materialmente impactado pela Covid-19, se demonstrada a inexistência de relação dos eventos com a atividade do fornecedor, e sendo estes estranhos ao produto ou serviço, estar-se-á, via de regra, diante da caracterização de força maior.

Partindo da premissa de que os efeitos da Covid-19 são alheios à vontade das partes, e atentos à necessidade de atenuação dos prejuízos à atividade empresarial, a SENACON e os PROCONs estaduais vêm orientando consumidores e fornecedores no sentido de (i) estimular o aditamento de contratos por meio da entrega do produto ou à prestação do serviço de forma alternativa, sem custos adicionais; (ii) garantir ao consumidor que, nos casos em que não houver outra possibilidade, seja viabilizado o cancelamento do produto ou serviço, com a restituição parcial ou total dos valores devidos, mas com possibilidade de ampliação do prazo de pagamento pelo fornecedor; (iii) sejam adotadas sistemáticas de reembolso que preservem o direito do consumidor mas não comprometa economicamente a atividade empresarial.

Para melhor visualização, seguem aqui, sintetizadas, algumas das recentes medidas adotadas por órgãos ligados ao Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor:

  1. a) Serviços aéreos e turísticos

Em 20/03/2020 foi celebrado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) com a Associação Brasileira das Empresa Aéreas (Abear), com vigência até 19/03/2021, podendo ser prorrogado em razão de eventual manutenção do cenário epidêmico nacional ou pandêmico mundial, contendo regramentos acerca do cancelamento de voos nacionais e internacionais em razão da pandemia de Covid-19.

Ajustou-se a possibilidade de remarcação de voos operados no período compreendido entre 01/03/2020 e 30/06/2020, por uma única vez, respeitada a mesma origem e destino e o enquadramento temporal (alta ou baixa temporada), para qualquer período dentro do intervalo de validade da passagem, sem a cobrança de taxa de remarcação ou diferença tarifária;

Estabeleceu-se a possibilidade de cancelamento de passagens para voos nacionais e internacionais, operados no período compreendido entre 01/03/2020 e 30/06/2020, sem aplicação de taxas ou multa, mediante conversão em crédito para utilização junto à companhia ou empresas parceiras, com validade de 1 ano.

Em caso de solicitação de reembolso por parte do consumidor, as companhias aéreas signatárias do TAC poderão aplicar as multas e taxas contratuais decorrentes do cancelamento e o valor residual será reembolsado em até 12 meses.

Por fim, restou entabulada a exclusão da responsabilidade da companhia aérea pela assistência material ao consumidor (prevista na Seção III da Resolução nº 400/2016 da Anac) nos casos de passageiros impactados por atrasos ou cancelamentos voos decorrentes do fechamento de fronteiras que impeçam as companhias aéreas de manterem seus voos para a localidade afetada pela Covid-19.

  1. b) Setor automobilístico 

Em nota publicada em 19/03/2020, a SENACON alertou as empresas quanto à necessidade de contínuo reporte das campanhas de recall ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), de acordo com o que determina a Portaria n° 618/2019, a qual estabelece em seu artigo 3º que “o fornecedor que, posteriormente à introdução do produto ou serviço no mercado de consumo, tiver conhecimento da sua nocividade ou periculosidade, deverá comunicar o fato, no prazo de dois dias úteis”.

Em atenção às medidas de isolamento social, recomendou-se, também, a avaliação da possibilidade de apresentação de novas campanhas de recall em duas etapas e readequação de companhas antigas, tudo com o objetivo de evitar que os consumidores sejam estimulados a sair de casa enquanto perdurar o cenário de pandemia.

  1. c) Serviços educacionais

Em Nota Técnica divulgada em 25/03/2020, a SENACON recomendou que consumidores evitem o pedido de desconto de mensalidades a fim de não causar um desarranjo nas escolas que já fizeram sua programação anual — o que poderia até impactar o pagamento de salário de professores, aluguel, entre outros custos e despesas.

Orientou, ainda, que as entidades de defesa do consumidor busquem tentativas de conciliação entre fornecedores e consumidores no mercado de ensino para que ambos cheguem a um entendimento no sentido de garantir a prestação dos serviços (oferta de ferramentas online e/ou recuperação das aulas, entre outras), sem que haja judicialização do pedido de desconto de mensalidades, possibilitando a preservação do contrato.

Adiante, em 27/03/2020, houve a celebração de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública em parceria com o Ministério Público Federal, com representantes das agências da categoria econômica representativa dos fornecedores de serviço de intercâmbio, com vigência até 10/03/2021, podendo ser prorrogado em razão de eventual manutenção do cenário epidêmico nacional ou mundial;

Ajustam a possibilidade de remarcação de pacotes de intercâmbio, sem custo adicional para o consumidor, em uma única oportunidade, para um período de 24 meses, contados da data original, respeitadas as demais condições originalmente pactuadas;

Em caso de cancelamento por iniciativa do consumidor, facultou-se à agência de intercâmbio que faça a retenção, a título de remuneração, de taxa de agenciamento no percentual de 15% cumulado com multa rescisória de 5% e 35%, a depender da data do embarque do aluno, com prazo para reembolso do valor residual em até nove meses, a contar da data de solicitação do cancelamento.

Em linha gerais, a principal recomendação dos órgãos públicos ligados ao Poder Executivo é de que as empresas ofereçam flexibilidade e possibilidade de negociação com o consumidor e, de outra banda, sejam os consumidores estimulados à opção pelo aditamento do contrato, por meio da postergação, alteração ou conversão de valores em créditos para posterior utilização junto à contratada.

Observa-se uma legítima preocupação das autoridades quanto à necessidade de se evitar cancelamentos e pedidos massificados de reembolso — o que viria a provocar um verdadeiro colapso generalizado no fluxo de caixa das empresas.

Outrossim, é sempre recomendável que as empresas forneçam informações claras e precisas aos consumidores, principalmente no que diz respeito à eventual impossibilidade de execução contratual nos termos originalmente pactuados, sem se descurar do dever de mitigação de eventuais danos, a prevalecer, em qualquer hipótese, o princípio da boa-fé objetiva, fonte dos deveres de informação e lealdade, tão caros à legislação cível e consumerista.

Para além de medidas legislativas, o enfrentamento dos impasses decorrentes da Covid-19 impõe aos órgãos administrativos e judiciais, ao se defrontar com demandas de revisão ou resolução de contratos do gênero, zelar pelo bem-estar do consumidor em sua condição peculiar, mas com redobro de cautela no que diz respeito à preservação da saúde econômico-financeira da empresa fornecedora.

Isso implica no necessário policiamento e reprimenda de comportamentos oportunistas por parte de consumidores. O papel dos órgãos administrativos e judiciais ganha ainda mais relevo no contexto atual, tanto em razão do já registrado aumento de demandas revisionais, quanto da potencial geração de externalidades negativas para a atividade empresarial e o dever das autoridades públicas de prevê-las e atenuá-las (artigos 20 e 21 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).

Tais autoridades são desafiadas ao alcance de soluções justas e economicamente racionais — o que demandará minucioso trabalho de subsunção normativa e adoção de parâmetros objetivos de revisão contratual, máxime em virtude da opção metodológica do Código de Defesa do Consumidor por conceitos abstratos e que, pelo grau de abstração, confiam ao julgador elevada carga interpretativa, a exemplo de expressões como “excessivamente onerosas” (art. 6º, V), “manifestamente excessivas” (art. 39, V) e “desvantagem exagerada” (art. 51, IV). Igual cautela demandará a aplicação de institutos processuais como a inversão do ônus da prova em detrimento do fornecedor.

Como é possível concluir, frente o delicado contexto econômico plantado pela Covid-19, a resposta para eventuais litígios em matéria consumerista demandará soluções ainda mais efetivas e, na medida do possível, menos atreladas ao dogma consumidor hipossuficiente e fornecedor hipersuficiente. A revisão de contratos de consumo deverá levar em conta não apenas os paradigmas normativos, mas também as externalidades econômicas da Covid-19 para a atividade empresarial como um todo. Afinal, em tempos de pandemia, crises financeiras de empresas não mais se prestam a supor má-administração, mas valentia.

Artigo originalmente publicado no portal Consumidor RS, em 03.04.2020.