BNDES acelera projeto de saneamento no Nordeste e prevê R$ 15,5 bilhões

Estimativa é que quatro blocos na região cheguem ao mercado até o fim do ano que vem

Na esteira do leilão de concessões de água e esgoto da região metropolitana de Maceió (AL), cuja arrecadação somou R$ 2 bilhões, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem mais quatro projetos de saneamento no Nordeste previstos para chegar ao mercado entre o quarto trimestre deste ano e o último de 2022. O cronograma inclui a licitação de concessões na Paraíba e em mais dois blocos de municípios em Alagoas, além de uma Parceria Público-Privada no Ceará. O investimento total estimado é de R$ 15,5 bilhões, e a população beneficiada, de 8,28 milhões de habitantes.

Só os investimentos projetados para a PPP dos serviços de coleta e tratamento de esgoto em 23 municípios cearenses totalizam R$ 8,6 bilhões. A previsão é de que o leilão ocorra ainda este ano, entre outubro e dezembro. Dados do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS) indicam que em 2019 pouco mais de um quarto da população cearense era atendida por rede de esgoto.

A opção por uma PPP em vez de uma licitação das concessões de serviços de coleta e tratamento de esgoto levou em consideração uma análise técnica dos indicadores de saneamento, inclusive o acesso da população à água potável, explica Fábio Abrahão, diretor de Infraestrutura, Concessões e Parcerias Público-Privadas do BNDES.

Em Alagoas, outros dois blocos de municípios – além das 13 cidades da região metropolitana incluídas na licitação de setembro – deverão ter concessões leiloadas no primeiro trimestre de 2022, conforme a programação da BNDES. “O ‘efeito demonstração’ vale muito. Todo mundo olha Alagoas e diz: ‘Quero ter igual’”, resume Abrahão. Juntos, os novos blocos somam 89 municípios. A injeção de recursos é estimada em R$ 2,9 bilhões.

Sócio do escritório Giamundo Neto Advogados, Luiz Felipe Graziano destaca a percepção positiva do mercado a respeito da participação da estatal Sabesp (consorciada à Iguá Saneamento) no leilão de Alagoas. “Foi um indicativo muito interessante. Abriu a perspectiva para novos players [participantes]”, opina o advogado. Fundos de investimento buscam operadores privados de menor porte e até empresas estaduais bem administradas para entrar na disputa por concessões, conta Graziano.

A modelagem do processo de entrada da iniciativa privada nos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário está na fase inicial na Paraíba, com a contratação de consultores. “Estamos fechando a contratação com o BNDES, que vai estruturar um projeto nessa importante área da infraestrutura do Estado”, disse o governador da Paraíba, João Azevêdo (Cidadania).

Em nota, ele esclareceu que o BNDES trabalhará em conjunto com a Companhia de Águas e Esgotos da Paraíba (Cagepa) para apresentar “a melhor alternativa” de recursos, em parceria com a iniciativa privada. O alcance inicial estabelecido para o projeto é de 96 municípios. A Cagepa presta serviços na maior parte (81,2%) dessas cidades. Pelas contas do BNDES, serão beneficiados 2,2 milhões de habitantes, o equivalente a 55% da população da Paraíba.

Na região Norte, o banco de fomento conversa com os governos de Rondônia e Roraima. Em Rondônia, está em discussão o modelo de contrato que seria assinado entre o BNDES e o Estado – fase anterior à da modelagem. Também estão em estágio inicial as negociações com Roraima.

Pelo menos até o fim de janeiro havia a expectativa de o governo baiano licitar concessões da Empresa Baiana de Água e Saneamento (Embasa). Segundo apurou o Valor, o governo estadual comunicou sua desistência ao BNDES. Por e-mail, a Secretaria de Infraestrutura Hídrica e Saneamento (SIHS) da Bahia informou que estuda “a melhor modalidade de contratação para os estudos das concessões dos serviços de saneamento básico.”

Previsto para o segundo trimestre deste ano, o leilão no Acre foi cancelado porque o Estado desistiu de ofertar a concessão plena de seus serviços de saneamento básico.

 

Matéria de autoria do jornalista Rodrigo Carro, do Valor Econômico, publicada em 09.03.2021.

A excepcionalidade da contratação de empresas penalizadas pelo poder público em tempos de pandemia

por Camillo Giamundo

Já é possível afirmar que a pandemia do coronavírus enfrentada pelo Brasil marca um período sem precedentes na história do país, forçando a adoção de medidas emergenciais, por parte dos Poderes Executivos, com vistas a minimizar – ou pelo menos limitar – o impacto que o vírus pode vir a causar, a exemplo do que já ocorreu nos países asiáticos, europeus e, agora, pelos Estados Unidos.

Poucos dias antes do primeiro caso oficial ter sido confirmado no país, foi sancionada a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, posteriormente complementada pelas Medidas Provisórias nºs 926 e 927, de 2020, e regulamentada pelos Decretos 10.282 e 10.288, 2020.

Especial destaque, e tema do presente artigo, diz respeito à dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, com excepcional possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e suspensão do direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público, quando se tratar, comprovadamente, de únicas fornecedoras do bem ou serviço a ser adquirido (artigo 4º, §3º).

Tal tema foi, inclusive, destaque da entrevista coletiva concedida pelo ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, no último dia 3 de abril, que destacou que o governo, no período atual, não tem tido condições de “cumprir todos os ritos”

A dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública já era permitida pela Lei Federal nº 8.666/93 (art. 24, inciso IV), porém, diante do atual cenário nacional e da gravidade do avanço do vírus, principalmente pelo impacto que a economia já está sofrendo e a necessidade de adoção de medidas emergenciais, com aquisição de bens e serviços necessários ao combate da propagação da doença e ao tratamento dos infectados, mostra-se bastante oportuna e acertada a possibilidade de contratação de empresas sancionadas.

Sobre o tema, destacamos os seguintes pontos importantes a serem observados e com as críticas e comentários necessários.

O primeiro ponto diz respeito ao §3º do artigo 4º da lei, que logo na partida condiciona a contratação de empresa sancionada pelo Poder Público em caráter excepcional na hipótese de, comprovadamente, tratar-se de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

Mostra-se, portanto, que a contratação é exceção à regra, devendo o Poder Público preferir a busca pela contratação por dispensa de licitação de empresas que não estejam sob os efeitos de qualquer penalidade administrativa.

O segundo ponto de destaque diz respeito às sanções administrativas a que se refere a lei, que decorrem de previsões de outros diplomas legais e correspondem às duas medidas mais graves de penalidades, por ordem crescente de severidade: (i) a suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração; e (ii)  declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública.

Tais sanções são aplicadas principalmente com base na Lei 8.666 (Lei de Licitações), como também a Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei 10.520/02 (Lei do Pregão), dentre outras normas, incluindo a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que prevê a competência de aplicar penalidades (artigo 46 da Lei 8.443/92) — o que revela que a possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público independe da esfera administrativa ou judicial na qual tenha sido processada, bem como da subsunção legal a que foi submetida, para enquadramento no artigo 4º, §3º da Lei 13.979.

O terceiro ponto diz respeito ao prazo da contratação excepcional, por dispensa de licitação.

Conforme o artigo 4º-H, os contratos regidos pela Lei 13.979 terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública, que não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial da Saúde (artigo 1º, §3º).

Bastante adequada a previsão dos dispositivos mencionados, pois permite a fruição, por parte do Poder Público, da prestação dos serviços, bens e insumos necessários durante o período de emergência, mantendo as condições de sustento do sistema público de saúde, enquanto perdurar a pandemia.

O quarto ponto de destaque e, aqui, de crítica, é a condição de contratação na hipótese de se tratar, comprovadamente, de empresa única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

A lei parte do pressuposto de que somente seria cabível a excepcionalidade quando verificada a impossibilidade e viabilidade de fornecimento de bens, serviços e insumos por outras empresas que não estejam sob os efeitos de sanções aplicadas pelo poder público.

Não há dúvidas de que qualquer empresa declarada inidônea ou que tenha sido tolhida do direito de participar de licitação e contratar com o poder público deva cumprir a penalidade a que foi submetida, desde que respeitado o devido processo legal administrativo, encerradas todas as oportunidades de defesa e recurso para afastamento da sanção. Até porque, a penalidade tem como uma de suas finalidades o caráter educativo, buscando reduzir e desincentivar as práticas infratoras e sua reincidência.

Contudo, e considerando o atual cenário de pandemia que o País atravessa, sendo frequentemente noticiada a falta de bens e insumos de extrema relevância e importância no enfrentamento da crise do vírus (tais como falta de material hospitalar, escassez de máscaras cirúrgicas, álcool em líquido ou gel, ventiladores mecânicos, entre outros insumos), com grande receio de colapso do sistema público de saúde, parece inoportuna a condição e requisito de contratação de empresa penalizada apenas na hipótese de inexistir outros fornecedores de bens e serviços a serem adquiridos.

Imagine-se a hipótese de um fornecedor de ventilador mecânico (equipamento imprescindível para tratamento de casos mais graves da covid-19) sem qualquer impedimento de licitar e contratar com poder público que eventualmente não consiga atender à demanda necessária. A condição do dispositivo da lei, nesse exemplo, impedirá a contratação de outra empresa fornecedora do mesmo equipamento que esteja sancionada, mas que poderia complementar o número de ventiladores necessários para atendimento dos infectados.

O que se defende é que, desde que a qualidade dos bens, serviços e insumos seja satisfatória e os preços estejam dentro da média praticada pelo mercado, não se mostra razoável condicionar a contratação de empresa inidônea ou suspensa de licitar e contratar com o poder público somente na hipótese de inexistirem concorrentes.

A situação do Brasil é de declarada calamidade pública, totalmente excepcional, de modo que se afigura mais aconselhável, nesse momento, a suspensão de tal condicionante da norma, permitindo-se a contratação de empresas sancionadas em caráter complementar, respeitada a preferência de escolha de empresas que não estejam sob os efeitos de quaisquer penalidades.

O poder público tem condições de fiscalizar e verificar a vantajosidade e economia dos preços a serem praticados pelas empresas sancionadas, bem como fiscalizar a regularidade da prestação dos serviços, de modo que problemas excepcionais clamam por soluções excepcionais, sendo o momento oportuno para deixar de lado o excesso de rigor e formalismo e priorizar o direito à vida e à saúde pública, até que tudo seja normalizado.

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 07.04.2020.

 

O direito de suspensão de serviços ou rescisão por falta de pagamento da Administração Pública, em contratos administrativos, e o risco de sanção

por Camillo Giamundo e Bruno de Oliveira Cortopassi

O uso do regular direito de suspensão dos serviços ou rescisão do contrato pelo particular, na relação com a Administração Pública, é, muitas vezes, coibido pela ameaça de aplicação ilegal e abusiva de sanções administrativas.

 

O regime jurídico de Direito Administrativo, em virtude dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, assegura à Administração Pública uma posição de superioridade frente aos particulares contratados, utilizando-se de prerrogativas inexistentes nas relações privadas, as quais são denominadas de “exorbitantes” e que conferem a ela tal posição hierárquica na persecução do interesse coletivo.

Dentre as cláusulas exorbitantes, é frequente a dúvida e discussão acerca do benefício que a Lei Federal 8.666/1993, que regula os contratos administrativos, concede à Administração Pública, a partir da prerrogativa de poder atrasar pagamentos devidos ao particular pelo prazo de até 90 (noventa) dias (art. 78, XV), sujeitando-o a arcar, durante tal período, com os custos e despesas dos serviços que presta sem qualquer possibilidade de paralisação ou diminuição de frente de trabalho, sob pena, inclusive, de aplicação de sanções contratuais (art. 87).

Não obstante, ao possibilitar o atraso – ou inadimplemento – por até 90 (noventa) dias, o artigo 78, inciso XV da lei 8.666/93, garante ao particular a possibilidade de suspender ou rescindir o contrato, caso tal prazo seja superado, assegurado o pagamento dos prejuízos que houver sofrido e dos serviços executados até então (art. 79, §2º e incisos).

Contudo, na prática, verifica-se que não são raras as vezes em que a Administração Pública acaba por não apenas atrasar – e, portanto, inadimplir – o devido pagamento previsto no contrato por prazo superior ao legalmente permitido, mas também por aplicar sanções administrativas ao particular contratado quando este faz uso do exercício de seu direito pela suspensão ou até pela rescisão contratual, extrapolando e abusando da posição que detém.

Embora o particular, quando contratado, seja conhecedor da condição diferenciada que assumirá na relação com a Administração Pública, aceitando as cláusulas exorbitantes previamente dispostas no edital do certame e do futuro contrato, que deve ser anexado ao instrumento convocatório, não se pode admitir que sobre ele recaiam os ônus e prejuízos causados exclusivamente pelo ente contratante sob o subterfúgio da incidência do princípio da supremacia interesse público e de sua indisponibilidade, desequilibrando a equação econômico-financeira e tornando impossível a continuidade de prestação dos serviços, ainda mais por prazo superior ao permitido em Lei, especialmente sob a ameaça de sofrer sanção contratual. Veja-se que o artigo 87 da lei 8.666/93 prevê, como possibilidades, a aplicação de pena de advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração e, a mais gravosa, declaração de inidoneidade, admitindo-se a aplicação conjunta das sanções (§2º), o que, por si só, pode representar grave ameaça ao particular contratado, especialmente aquele que costumeiramente contrata com o Poder Público e pode ser prejudicado por decisões administrativas arbitrárias e ilegais.

Em situações como esta, , em que a Administração Pública contratante restou inadimplente por prazo superior ao limite legal e o particular se utilizou do direito de suspender seus serviços ou de rescindir a relação contratual, afigura-se abusiva e ilegal a aplicação de qualquer sanção por parte da Administração, desafiando-se a intervenção do Poder Judiciário para a imediata suspensão de seus efeitos. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em situação como esta, determinou que a Administração se abstivesse de aplicar sanção em razão da falta de pagamento pelo prazo superior ao previsto no artigo 78, inciso XV da Lei de Licitações. No caso, uma empresa do ramo farmacêutico impetrou Mandado de Segurança pleiteando o afastamento da aplicação de sanções administrativas em razão da suspensão do contrato por decorrência do inadimplemento da Administração Pública. O Relator Carlos Levenhagen fundamentou sua decisão explicando que o regime contratual administrativo, apesar de garantir uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, não pode servir de justificativa para a inobservância das obrigações contratuais e respeito ao art. 78, XV da lei 8.666/93, visto que não se pode aplicar irrestritamente a inoponibilidade dos interesses públicos:

“Como se sabe, o regime contratual administrativo possui uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, sendo, uma delas, a posição preponderante da Administração dentro da relação contratual, expressão do princípio da supremacia do interesse público (…) Assim, dos elementos consignados nos autos, contata-se que o objeto contratual foi devidamente executado pela contratada, não tendo esta, contudo, recebido a ajustada contraprestação por parte do ente municipal, motivo pelo qual se valeu da prerrogativa do art. 78, XV, da lei 8.666/93. Ainda, não se desincumbiu o Município de demonstrar a existência de fundamento ou fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da impetrante.”
(TJMG – Remessa Necessária-Cv 1.0647.16.003941-6/001, Relator(a): Des.(a) Carlos Levenhagen, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/12/2017, publicação da súmula em 23/01/2018)

Em sendo assim, evidencia-se ainda ser comum a prática da Administração Pública em avocar o princípio da supremacia do interesse público para se esquivar do cumprimento de suas obrigações contratuais – especialmente aquela prevista no artigo 78, inciso XV da Lei Federal 8.666/93 -, de sorte que caberá ao contratado a adoção de providências necessárias para a suspensão de serviços ou a rescisão do contrato, não podendo ser sancionado em razão do exercício regular de seu direito legalmente garantido, devendo, eventuais arbitrariedades, serem afastadas pelas vias judiciais cabíveis.

___________________________________________________________________________

*Camillo Giamundo é especialista e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, e sócio fundador do escritório Giamundo Neto Advogados.

*Bruno de Oliveira Cortopassi é acadêmico de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e integrante da equipe de Direito Administrativo do escritório Giamundo Neto Advogados.

 

Artigo originalmente publicado no periódico Migalhas, em 01.04.2020.

A pandemia do coronavírus e seus reflexos iniciais no setor elétrico brasileiro

por Philippe Ambrosio Castro e Silva

Nas últimas semanas, em meio à pandemia deflagrada pela disseminação da covid-19 (novo coronavírus), o mundo globalizado tem sentido os temores concretos de uma grave recessão nos diversos setores da economia.

Por força das incertezas provocadas pela paralisação das atividades econômicas nas mais variadas áreas, em decorrência de medidas de isolamento social impostas pelos governos mundo à fora, a economia já tem começado a manifestar os primeiros sinais da desaceleração brusca que inevitavelmente se poderia esperar de um evento dessa magnitude.

Dentre os setores da economia atingidos se encontra o setor elétrico, que, especificamente no Brasil, tem sofrido severamente com sucessivas crises ao longo da presente década, seja por medidas intervencionistas precipitadas e mal planejadas, seja pela última e recente recessão econômica enfrentada pela economia brasileira, seja por fatores climáticos que impactaram significativamente geradores hidrelétricos anos atrás, seja pela intrincada, complexa e até mesmo defasada legislação que regula o setor, a qual vem estimulando uma crescente judicialização nas mais variadas relações jurídicas sustentadas pelos agentes setoriais.

No caso específico da presente crise que se avizinha, conforme salientado, os primeiros sinais já têm sido demonstrados, tendo em vista a forte redução no consumo de energia em todo o Brasil, em especial por conta da interrupção total ou parcial da atividade industrial.

Tal circunstância já tem provocado movimentações entre os agentes setoriais, sobretudo por parte de grandes consumidores livres que têm se visto impossibilitados de exercer suas atividades e, assim, de consumir os volumes de energia contratados, o que acabará por criar sobras de energia que serão invariavelmente vendidas no mercado spot por preços muito inferiores àqueles praticados em seus contratos.

Situação similar vem ocorrendo com concessionárias distribuidoras de energia, que inevitavelmente não terão a quem suprir os montantes de energia contratados, de modo a ficarem também com sobras significativas de volumes de energia.

Tudo isso, por sua vez, já tem iniciado uma corrida entre os agentes setoriais por meio da invocação de cláusulas de força maior em seus contratos com comercializadores e geradores, a fim de se eximirem do cumprimento de suas obrigações de pagamento aos respectivos vendedores de energia, fato que, por seu turno, tem o condão de criar um efeito cascata de disputas setoriais em procedimentos de arbitragem e mais uma onda de judicialização no setor elétrico, uma vez que comercializadores e geradores também seriam prejudicados com sobras de energia ou com o não cumprimento de seus contratos pelos respectivos compradores, afetando, assim, o equilíbrio-econômico financeiro de suas relações contratuais.

Nesse contexto, compete salientar que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recente e rapidamente editou a Resolução Normativa nº 878/2020, que dispõe sobre as medidas para preservação da prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, em decorrência da calamidade pública atinente à pandemia do novo coronavírus.

A norma em questão versa essencialmente sobre medidas que buscam desonerar e garantir a prestação do serviço de distribuição aos consumidores cativos, que se verão imersos, em grande parte, a dificuldades em arcar com suas obrigações para com as respectivas distribuidoras.

No entanto, em virtude de a deflagração da pandemia e de seus efeitos serem bastante recentes, a agência reguladora ainda não foi capaz de criar mecanismos normativos destinados a dirimir as controvérsias que certamente advirão no futuro próximo, sobretudo entre os agentes de geração, de comercialização e de distribuição.

Assim, na condição de agência reguladora que detém a competência fixada em lei para mediar e resolver os conflitos entre os agentes do setor elétrico, caberá à Aneel zelar pela preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos mantidos pelos agentes setoriais — em especial daqueles que se encontram na “ponta” inicial da cadeia de consumo, isto é, dos agentes geradores —, mediante a adoção de medidas capazes de sanar o possível déficit em suas receitas por conta da invocação de circunstâncias de força maior em seus contratos de comercialização de energia, assim como mitigar possíveis impactos negativos setoriais relacionados com o risco hidrológico (GSF) — para geradores hidrelétricos —, em função de despachos do Operador Nacional do Sistema (ONS) que venham a determinar a redução da geração.

Com isto, evitar-se-á o agravamento das dificuldades econômicas enfrentadas ao longo das últimas e recentes crises setoriais, de modo a não afugentar ainda mais aqueles que pretendem empreender no setor.

Do contrário, uma nova onda de litígios de arbitragem e judiciais surgirá, cabendo ao Poder Judiciário, por omissão da Aaneel, zelar pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos das partes que dele venham a se socorrer, muitas vezes, porém, em detrimento dos interesses de todos os demais agentes setoriais, circunstância que sabidamente tem desafiado o exercício da atividade econômica no setor elétrico nacional.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 30.03.2020.

A autocomposição e a arbitragem nos litígios envolvendo a ANTT

Por Diogo Albaneze Gomes Ribeiro[1]

 

  1. Introdução

Em 17.05.2019, entrou em vigor a Resolução nº 5.845, de 14 de maio de 2019 (“Resolução nº 5.845/19”), que dispõe sobre as regras procedimentais para a utilização da autocomposição e da arbitragem nos litígios envolvendo a Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”) e seus regulados.

Referida Resolução busca facilitar e fortalecer a utilização de mecanismos alternativos de solução de controvérsias em contratos envolvendo a ANTT. Para tanto, a Resolução nº 5.845/19 procurou deixar consignado não apenas as matérias passíveis de serem submetidas à autocomposição e/ou à arbitragem, mas também o próprio procedimento para a sua instauração, incluindo, dentre outros aspectos, a sistemática de pagamento de custas, escolha de árbitros, mediadores e da própria Câmara Arbitral.

 

  1. Os direitos patrimoniais disponíveis reconhecidos pela Resolução nº 5.845/19

Sem prejuízo de outras matérias a serem avaliadas no caso concreto, a Resolução nº 5.845/19 deixou consignado que as seguintes discussões poderão ser submetidas à autocomposição e/ou à arbitragem.

  • recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos;
  • indenizações decorrentes da extinção ou transferência do Contrato;
  • penalidades contratuais e seu cálculo, bem como controvérsias advindas da execução de garantias;
  • processo de relicitação do contrato nas questões que envolvam o cálculo das indenizações pelo órgão ou pela entidade competente; e
  • inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.

Por outro lado, assuntos relacionados, por exemplo, ao poder de fiscalização sobre a exploração do serviço delegado e a pedidos de rescisão de contrato por parte da Concessionária foram expressamente excluídos da possibilidade de serem submetidos ao procedimento de Solução de Controvérsias (art. 3º).

 

  1. O processo de mediação

Nos termos da Resolução nº 5.845/19, o processo de mediação, além de ser facultativo, deverá ser conduzido pela Advocacia Geral da União, nos termos do art. 32 da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015 (art. 8º).

O pedido de instauração da mediação será autuado e encaminhado à Superintendência de Processo Organizacional com competência sobre a matéria controversa para manifestação acerca da admissibilidade do pleito. Após instrução do pedido apresentado, os autos serão enviados à Diretoria Colegiada para decisão sobre a admissibilidade, a conveniência e a oportunidade de a ANTT participar da mediação.

Decidida a participação da ANTT, a Diretoria Colegiada indicará servidor como representante na mediação e delimitará seus poderes negociais. Eventual acordo firmado com a ANTT somente adquirirá validade caso venha a ser aprovado pela Diretoria Colegiada.

Não havendo acordo, a matéria em discussão poderá ser submetida à arbitragem, podendo as partes definir no termo final da mediação a celebração de compromisso arbitral.

 

  1. O processo de arbitragem

Um aspecto interessante da Resolução nº 5.845/19 foi prever expressamente a possibilidade de a ANTT celebrar compromisso arbitral mesmo nos casos em que não há cláusula compromissória no contrato em discussão.[2] Nesses casos, contudo, deverá a ANTT avaliar previamente, no caso concreto, as vantagens e desvantagens da arbitragem (quanto ao prazo para a solução do litígio, ao custo do procedimento e à natureza da questão litigiosa). Trata-se, portanto, de uma decisão discricionária da ANTT.

Nesse aspecto, a Resolução nº 5.845/19 apenas positivou (corretamente, na nossa visão) o entendimento jurisprudencial acerca da desnecessidade de previsão do compromisso arbitral no edital e/ou no contrato:[3]

PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. LICITAÇÃO. ARBITRAGEM. VINCULAÇÃO AO EDITAL. CLÁUSULA DE FORO. COMPROMISSO ARBITRAL. EQUILÍBRIO ECONÔMICO FINANCEIRO DO CONTRATO. POSSIBILIDADE.

(…)5.Tanto a doutrina como a jurisprudência já sinalizaram no sentido de que não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público, notadamente pelas sociedades de economia mista, admitindo como válidas as cláusulas compromissórias previstas em editais convocatórios de licitação e contratos.

6.O fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente.

7. previsão do juízo arbitral, em vez do foro da sede da administração (jurisdição estatal), para a solução de determinada controvérsia, não vulnera o conteúdo ou as regras do certame.

8. A cláusula de eleição de foro não é incompatível com o juízo arbitral, pois o âmbito de abrangência pode ser distinto, havendo necessidade de atuação do Poder Judiciário, por exemplo, para a concessão de medidas de urgência; execução da sentença arbitral; instituição da arbitragem quando uma das partes não a aceita de forma amigável.

9. A controvérsia estabelecida entre as partes – manutenção do equilíbrio econômico financeiro do contrato – é de caráter eminentemente patrimonial e disponível, tanto assim que as partes poderiam tê-la solucionado diretamente, sem intervenção tanto da jurisdição estatal, como do juízo arbitral.

10.A submissão da controvérsia ao juízo arbitral foi um ato voluntário da concessionária. Nesse contexto, sua atitude posterior, visando à impugnação desse ato, beira às raias da má-fé, além de ser prejudicial ao próprio interesse público de ver resolvido o litígio de maneira mais célere.

11. Firmado o compromisso, é o Tribunal arbitral que deve solucionar a controvérsia.

12.Recurso especial não provido.

 

Outro aspecto trazido pela Resolução nº 5.845/19 foi o de estipular uma sistemática para a escolha das câmaras arbitrais. Nesse ponto, deixou consignado que que os contratos de outorga de serviços públicos e os compromissos arbitrais firmados pela ANTT deverão definir expressamente uma ou mais câmaras arbitrais dentre as credenciadas, nos termos do § 5º do art. 31 da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017.[4]

Na hipótese de não ter sido previamente definida a câmara arbitral, a ANTT indicará três câmaras cadastradas em conformidade com decreto regulamentador do §5º do art. 31 da Lei nº 13.448/2017 (que estabelece as diretrizes gerais para prorrogação e relicitação dos contratos de parceria, nos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal), sendo que caberá à parte privada a escolha de uma das câmaras indicadas.

 

  1. Pontos da Resolução nº 5.845/19 passíveis de questionamentos

 Um aspecto que poderá gerar questionamentos decorre da previsão contida no art. 4ª da Resolução nº 5.845/19, segundo a qual as controvérsias só poderão ser submetidas ao regramento descrito nesta Resolução após decisão definitiva da ANTT.

Pelo parágrafo único do referido dispositivo, considera-se definitiva a decisão administrativa quando dela não couber mais recurso. Em outras palavras, a Resolução pretende condicionar o início de eventual litígio arbitral a uma decisão administrativa definitiva da ANTT.

Em que pesem as diversas virtudes da Resolução nº 5.845/19, essa condicionante deve ser interpretada com cautela, sobretudo quando a matéria em discussão no âmbito administrativo não estiver submetida a recurso dotado de efeito suspensivo.

Afinal, considerando o princípio constitucional do livre acesso à justiça,[5] não parece haver justificativa para impedir a instauração da arbitragem, pela parte interessada, mesmo durante a tramitação do processo administrativo.[6]

“(…) MANDADO DE SEGURANÇA. DISCUSSÃO JUDICIAL DA MATÉRIA. RENÚNCIA PELA VIA ADMINISTRATIVA. RECURSO VOLUNTÁRIO SEGUIMENTO INDEFERIDO.

Segundo o princípio da unidade da jurisdição, havendo concomitância entre o objeto da discussão administrativa e o da lide judicial, tendo ambos origem em uma mesma relação jurídica de direito material, torna-se despicienda a defesa na via administrativa, uma vez que esta se subjuga ao versado naqueloutra, em face da preponderância do mérito pronunciado na instância judicial. Há uma espécie de renúncia tácita pelo processo administrativo, pois a continuidade do debate administrativa é incompatível com a opção pela ação judicial (preclusão lógica).”

 

Outro aspecto da Resolução que merece ser devidamente interprestado se refere à disposição contida no art. 17 da Resolução nº 5.845/19. Pelo referido dispositivo, “Antes da constituição do tribunal arbitral, as medidas cautelares ou de urgência somente poderão ser requeridas ao órgão competente do Poder Judiciário.”.

Essa exigência, a nosso ver, não observa a evolução e a prática mais moderna da arbitragem (que já vem sendo aplicada pelas principais Câmaras Arbitrais, inclusive) no sentido de instituir a figura do “Árbitro Provisório” ou “Árbitro de Emergência”.[7]

O “Árbitro Provisório” configura um procedimento segundo o qual, antes de instituída a arbitragem, a parte poderá requerer medidas cautelares ou de urgência no âmbito da própria Câmara Arbitral. Trata-se de tema absolutamente atual e que já vem sendo aplicado na prática (inclusive em litígios relacionados a contratos administrativos).

Sendo assim, com exceção de alguns aspectos que deverão ser devidamente interpretados à luz do ordenamento jurídico em vigor e das práticas mais atualizadas da arbitragem, parece-nos que a Resolução nº 5.845/19 possui a inequívoca virtude de facilitar e fortalecer a utilização de mecanismos alternativos de solução de conflitos nos contratos envolvendo a ANTT.

 

______________

[1] Advogado, especialista e mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP.

[2] Além disso, a Resolução nº 5.845/19 admitiu expressamente a possibilidade de aditar os contratos que não contenham a cláusula compromissória (art. 27).

 

[3] STJ – REsp 904813/PR, Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª T., j. 20/10/2011, DJe 28/02/2012 – grifo nosso.

[4] Art. 31. As controvérsias surgidas em decorrência dos contratos nos setores de que trata esta Lei após decisão definitiva da autoridade competente, no que se refere aos direitos patrimoniais disponíveis, podem ser submetidas a arbitragem ou a outros mecanismos alternativos de solução de controvérsias.

(…)

  • 5º Ato do Poder Executivo regulamentará o credenciamento de câmaras arbitrais para os fins desta Lei.

[5] Art. 5º, inc. XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”.

[6] STJ – Ag 1394327, Min. HUMBERTO MARTINS, j. 26/04/2011 – Grifo Nosso.

[7] Nesse contexto, por exemplo, a Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP, por meio da Resolução nº 4/2018, instituiu a figura do Requerimento de Árbitro Provisório, nos seguintes termos: “1.1. Antes de instituída a arbitragem nos termos do item 2.4 do Regulamento, a parte que pretenda medidas cautelares ou de urgência poderá requerer ao Presidente da Câmara, por meio de Requerimento de Árbitro Provisório (“Requerimento”) que nomeie uma árbitra ou um árbitro provisório (“Árbitro Provisório”), cuja missão será deliberar sobre a medida de urgência, a qual vigerá até que o Tribunal Arbitral decida sobre a matéria.

As sanções aplicadas pelo Banco Mundial e a extensão de seus efeitos nas licitações nacionais

por Camillo Giamundo e Fernanda Leoni

Os efeitos das sanções por ele aplicadas somente serão expansíveis e atingirão as licitações nacionais que contenham recursos disponibilizados pelo ente sancionador, de modo que qualquer vedação genérica de participação com base em tal sanção deverá ser considerada ilegal e, portanto, passível de questionamento judicial.

Cada vez mais presentes nas licitações nacionais, sob a égide do artigo 42, §5º da lei federal 8.666, de 21 de junho de 19931, o financiamento internacional de obras e serviços traz um novo cenário à relação do particular com o Poder Público, que passa a atender e se vincular não apenas às disposições previstas na legislação brasileira, com a Administração Pública Contratante, como àquelas trazidas pelas diretrizes do Organismo Financiador, cuja inobservância pode acarretar a aplicação de sanções também por parte deste.

Assim, é importante analisar o regime jurídico aplicável ao sistema de sanções de competência de organismos internacionais de financiamento, com foco no regramento estabelecido pelo Banco Mundial, especialmente para identificar a possibilidade de extensão dos efeitos das sanções eventualmente aplicadas por tais órgãos nas licitações realizadas no Brasil, com ou sem emprego de recursos internacionais.

1.Do regime sancionatório aplicável ao Banco Mundial

Em razão do seu histórico e longevidade2 em comparação a outros organismos internacionais de financiamento, bem como pela relevância de sua atuação no financiamento de empreendimentos no Brasil, faz-se necessária a análise do regime jurídico sancionatório aplicável ao Banco Mundial, com a ressalva adequada nas situações em que se venha a tratar de qualquer outro organismo assemelhado ou equiparado.

Ressalte-se, a princípio, que o Grupo Banco Mundial (The World Bank) é uma agência internacional, complementar e independente ao Sistema das Nações Unidas que, apesar de criada para funcionar como unidade de apoio a um sistema financeiro internacional, hoje atua como ente especializado na assistência para o desenvolvimento de países em situação de pobreza3.

Atualmente, o Banco Mundial funciona por meio de cinco diferentes instituições4, cada uma delas com estratégias de atuação específicas – embora alinhadas às diretrizes gerais do grupo –, que podem ser assim sintetizadas:

  • Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento – “BIRD” (The International Internacional Bank for Reconstruction and Development – “IBRD”): Trata-se de uma cooperativade desenvolvimento global, responsável pelo fornecimento de empréstimos, garantias, auxílio no gerenciamento de riscos e serviços de consultoria para países considerados de “baixa renda” ou em “estágio de desenvolvimento”.
  • Associação Internacional de Desenvolvimento – “AID” (The International Development Association – “IDA”): Também tem por função o auxílio aos países de “terceiro mundo”, igualmente objetivando o combate à pobreza, por meio da concessão de crédito, com o diferencial de fornecer recursos com maior prazo de financiamento e menores taxas de juros.
  • Corporação Financeira Internacional – “CFI” (The International Finance Corporation – “IFC”): De acordo com as diretrizes do Banco Mundial, esta é a instituição responsável por atuar em projetos de desenvolvimento focados no setor privado de países parceiros.
  • Agência Multilateral de Garantia ao Investimento – “AMGI” (The Multilateral Investment Guarantee Agency – “MIGA”): Trata-se da instituição responsável pela promoção de investimentos a partir do oferecimento de garantias aos investidores, não se voltando, portanto, diretamente aos países beneficiários, mas aqueles que possuam interesse em investir.
  • Centro Internacional para Resolução de Controvérsias sobre Investimentos (The International Centre for Settlement of Investment Disputes – “ICSID”): É a instituição internacional de arbitragem e mediação no âmbito do Banco Mundial, especializada em disputas relacionadas a investimentos oferecidos por suas instituições. Trata-se do único órgão do Banco Mundial do qual o Brasil não é Estado-membro.

Dentre os órgãos em referência, somente o BIRD e a AID estão voltados a uma atuação mais relacionada ao campo das licitações públicas, na medida em que financiam, dentro de suas competências, contratações públicas estratégicas para o governo nacional. Em todo caso, vale mencionar que estes órgãos não possuem um sistema sancionatório próprio e/ou independente, mesmo quando sejam eles “partes” no procedimento de financiamento.

Ainda que o Banco Mundial exercesse atividade fiscalizadora e punitiva em relação aos contratos firmados desde o ano de 19965, foi somente a partir da reforma de 2006 que ocorreu a criação de um órgão sancionatório interno especializado na matéria, genericamente denominado “Escritório de Suspensão e Exclusão” (Office of Suspension and Debarment – “OSD”), que atua como um primeiro nível ou instância de aplicação de sanções. O OSD é diretamente auxiliado pela Vice-Presidência de Integridade (Integrity Vice Presidence – “INT”), enquanto responsável pela fase investigatória dos processos administrativos sancionatórios. Somente após identificados indícios suficientes do cometimento de uma infração passível de sancionamento é que o INT remeterá o caso à apreciação do OSD. Integra esta esfera sancionatória, ainda, o Conselho de Sanções do Banco Mundial (World Bank Group Sanctions Board), composto por sete juízes externos, atuando como um Tribunal Administrativo de segunda instância ou Corte de revisão.

A atuação do Banco Mundial em matéria sancionatória possui um completo acervo normativo6, podendo ser citadas como principais referências: (i) Diretrizes sancionatórias do Banco Mundial (World Bank Group Sanctioning Guidelines), de 1/1/11; (ii) Diretrizes de prevenção e combate à fraude e corrupção em contratos de financiamento por resultados (Guidelines on Preventing and Combating Fraud and Corruption in Program for Results Financing), de 01/02/2012; (iii) Políticas para a aplicação de sanções por fraude e corrupção (WBG Policy: Sanctions for Fraud and Corruption), de 13/06/2016; (iv) Procedimentos de sanções e determinações em projetos de financiamento (Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Finance Projects), de 28/06/2016; e, (v) Diretivas para sanções por fraude e corrupção em projetos financiados pelo Banco Mundial (Bank Directive: Sanctions for Fraud and Corruption in Bank Financed Projects), de 28/06/2016.

Por tratarem-se de normas complementares e de igual hierarquia, não há uma ordem preferencial quanto à aplicação de suas disposições, sendo que as informações que serão abordadas a seguir serão devidamente referenciadas para posterior consulta ou conferência. Como já brevemente exposto, o sistema sancionatório do Banco Mundial tem o seu exercício concentrado em três principais órgãos (“sujeito ativo”), cuja estrutura e competências podem ser resumidas no seguinte quadro7:

INT SDO Conselho de Sanções
– Investigar infrações administrativas;

– Iniciar e participar dos procedimentos sancionatórios;

– Conduzir e celebrar acordos com investigados.

– Avaliar os casos como primeira instância, impondo suspensão temporária, levando em consideração as defesas apresentadas e aplicando sanções, se for o caso;

– Monitorar o cumprimento dos procedimentos aplicáveis.

– Atuar como segunda instância ou corte de revisão nos processos apreciados pelo SDO.

Já a caracterização como “sujeito passivo” das sanções aplicáveis pelo Banco Mundial é bastante abrangente8, incluindo qualquer entidade ou indivíduo, público ou privado, que venha a ser envolver com a prática de qualquer das infrações administrativas genericamente designadas nos normativos correspondentes. O que se nota, das diretrizes, é que há uma busca pela proteção da moralidade e ética nas contratações e processos de seleção financiados pelo Banco.

São consideradas infrações passíveis de sancionamento as práticas caracterizadas como fraude corrupção (práticas fraudulentas, de corrupção, de conluio e coercitivas), além das hipóteses em que a parte seja acusada de obstruir as investigações do Banco Mundial, sendo que a definição de cada uma destas infrações é assim tratada nas Diretrizes9:

  • Ato de corrupção: Consiste em oferecer, dar, receber ou solicitar, diretamente ou indiretamente, qualquer coisa de valor para influenciar indevidamente nas ações de outra parte;
  • Prática fraudulenta: Qualquer ato ou omissão, inclusive falsidade ideológica, que venha sabidamente e audaciosamente induzir ou tentar induzir uma das partes a erro, a fim de obter benefício financeiro ou de outra natureza ou de se furtar de uma obrigação;
  • Prática de conluio: É o acordo entre duas ou mais partes objetivando propósitos impróprios, incluindo a influência indevida nas ações de outra parte;
  • Prática de coerção: Causar ou ameaçar causar, direta ou indiretamente, dano ou prejuízo a qualquer das partes ou a bem a ela pertencente, com a intenção de influenciar de maneira imprópria os atos dessa parte.
  • Prática de obstrução: Destruir, falsificar, adulterar ou ocultar deliberadamente indício necessário para a investigação ou fazer declarações falsas aos investigadores a fim de obstar materialmente uma investigação pelo Banco.

Identificados indícios da prática de qualquer destas infrações, o INT fica responsável por realizar a investigação e eventual preparação da declaração de acusação e evidências, que consiste no documento formal de acusação remetido ao SDO para efetivo início do procedimento sancionatório10. Antes disso, existindo indícios mais robustos da prática de qualquer infração, o INT pode sugerir a suspensão cautelar do investigado durante a condução do procedimento, que será imposta pelo Oficial de Avaliação e Suspensão (Evaluation and Suspension Officer – “EO”). Essa suspensão preliminar pode ser revertida a qualquer momento pelo interessado, mediante requerimento fundamentado ao EO. Se o EO concluir que a acusação está calcada em evidências suficientes da prática de uma infração, será emitido um aviso de instauração do procedimento ao acusado, com cópia de todas as acusações e respectivas evidências, bem como a informação sobre a sua suspensão temporária como entidade / indivíduo elegível para o financiamento de contratos com recursos do Banco Mundial. O acusado poderá contestar a determinação do EO, sendo que a sua revelia importará no reconhecimento da validade e respectiva imposição da suspensão de forma definitiva (exclusão). Havendo contestação, sua apreciação é remetida ao Conselho de Sanções do Banco Mundial, que pode acatar ou reformar a decisão anterior.

Nas hipóteses em que não seja sugerida a adoção da suspensão temporária (ou cautelar), o processo é remetido ao SDO, que atua de forma semelhante, aplicando a sanção (se comprovada a infração) ou arquivando o procedimento (se inexistentes evidências suficientes da infração), com idêntica possibilidade de defesa e posterior revisão do caso pelo Conselho de Sanções do Banco Mundial11, sendo certo que ao final do processo são cabíveis as seguintes sanções:

  • Exclusão, com liberação condicional: A sanção padrão a cargo do Banco Mundial é a exclusão temporária do acusado da lista de “elegíveis”, por período determinado, findo o qual o interessado poderá requerer a sua reabilitação, desde que atendidas determinadas condições, que geralmente envolvem a criação e cumprimento de um plano de integridade;
  • Exclusão comum (plain vanilla): Aplicável às empresas que já possuam um plano de integridade bem elaborado e cuja prática da infração tenha sido comprovadamente isolada. Nesta hipótese, passado o período da sanção, a empresa passa a ser automaticamente elegível, sem a necessidade de que cumpra qualquer condicionante;
  • Não exclusão, mas com o atendimento de condicionantes: Neste caso, a parte não é excluída da situação de “elegível”, desde que atenda condições determinadas no prazo especificado pelo Banco Mundial. Acaso sobrevenha descumprimento de qualquer condição, aplica-se a exclusão por período determinado. Essa sanção é adotada apenas nas hipóteses em que haja a comprovação de que a parte adotou medidas que denotem ser desnecessária a sua exclusão;
  • Carta de Reprimenda: De acordo com a proporcionalidade, em casos de menor gravidade, o Banco Mundial pode encaminhar simples advertência à parte; e,
  • Restituição: Em situações específicas, a parte pode ser condenada a restituir os valores recebidos.

Para a aplicação de qualquer destas sanções, a gradação da penalidade leva em consideração12(i) a gravidade da conduta; (ii) a magnitude do dano causado; (iii) a interferência da parte sancionada na investigação do Banco; (iv) o histórico de má conduta da parte sancionada (que, inclusive, pode levar em consideração sanções aplicadas por outros organismos internacionais); (v) as circunstâncias atenuantes, tal como a cooperação com o Banco13(vi) a violação da confidencialidade do processo sancionatório; (vii) o período de inegebilidade ou de suspensão já cumpridos; e, (viii) outros fatores reputados relevantes.

Por fim, com relação aos efeitos destas sanções, saliente-se que o Conselho de Sanções ou SDO podem limitá-los a uma determinada divisão ou unidade de negócios da entidade, assim como estendê-los aos afiliados do acusado, assim entendidos qualquer pessoa física ou jurídica que controle, seja controlada ou esteja sob controle comum do acusado14. Ademais, estas sanções já são automaticamente transferidas aos sucessores do acusado.

2.Da Extensão das sanções a outros organismos de financiamento internacional

Compreendido o procedimento adotado pelo Banco Mundial para a aplicação de sanções sob a sua competência, que, por razões lógicas, estão limitadas aos financiamentos disponibilizados pela própria instituição, cumpre avaliar a possibilidade jurídica de que estas sanções apresentem eventual comunicabilidade com procedimentos adotados por organismos assemelhados.

Conforme a Seção III, item “B”, subitem 7, das Políticas para a aplicação de sanções por fraude e corrupção, o Banco Mundial pode reconhecer e adotar as sanções de exclusão impostas por outros organismos de financiamento, em um procedimento de “exclusão cruzada”, assim descrito no documento:

  1. Exclusão Cruzada:O Banco Mundial pode reconhecer e aplicar as decisões de exclusão de outros bancos multilaterais de desenvolvimento, em conformidade com o Acordo para a Execução Mútua de Decisões de Exclusão, datado de 09/04/2010 (com eventuais alterações, complementos ou revisões periodicamente aprovados pelo Conselho). O Conselho poderá, periodicamente, autorizar a inclusão de um banco multilateral de desenvolvimento à lista de instituições existente, cujas decisões de exclusão o Banco geralmente reconhece de forma cruzada. A gerência decide se o Banco Mundial reconhecerá e aplicará, em relação a cada particular, a decisão de exclusão aplicada por outros bancos multilaterais de desenvolvimento, conforme o Acordo. O sistema de sanções também pode acolher procedimentos sancionatórios baseados nas decisões de exclusão relacionadas à fraude e corrupção, em conexão com os procedimentos corporativos de aquisição do Banco Mundial15.

Consoante indica o trecho em colação, o Banco Mundial poderá adotar a decisão de exclusão aplicada por outro organismo de financiamento – genericamente denominado como “bancos multilaterais de desenvolvimento” – como válida, deixando, portanto, de reconhecer o sancionado como elegível em seus procedimentos. Além disso, o procedimento adotado por outros organismos pode servir como uma espécie de precedente ou base para a denúncia de abertura de um procedimento sancionatório pelo próprio do Banco Mundial, que utilizará parcela ou totalidade de seus elementos como instrução.

A possibilidade jurídica da exclusão cruzada está calcada em acordo datado de 9/4/1016, no qual atualmente figuram como signatários, além do Banco Mundial, o Banco Asiático de Desenvolvimento (Asian Development Bank), o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (European Bank for Reconstruction and Development), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (Inter-American Development Bank) e o Banco Africano de Desenvolvimento (African Development Bank). Referido instrumento estabelece que os signatários usem definições uniformes para a caracterização das infrações passíveis de sancionamento, para os procedimentos de apuração aplicáveis e para as sanções impostas – todos eles descritos no tópico anterior.

Uma vez integrantes do acordo, cada participante é obrigada a notificar aos demais signatários acerca de eventual decisão de exclusão imposta, incluindo na notificação: (i) o nome da entidade sancionada; (ii) a infração praticada; e, (iii) o detalhamento dos termos da sanção imposta.

Para o reconhecimento da extensão dos efeitos desta decisão, cada instituição participante avaliará os seguintes critérios: (i) se a decisão foi baseada, total ou parcialmente, na efetiva prática de uma infração sancionável; (ii) se a decisão foi publicada; (iii) se o período da sanção excede um ano; (iv) se a decisão é posterior à assinatura e ingresso no acordo pela instituição; (v) se a decisão foi imposta no período de dez anos contados da prática da infração; e, (vi) se a decisão foi imposta por outra instituição, não participante do acordo.

O período da sanção imposta por uma instituição não vincula os demais signatários do acordo, que podem adotar a sanção, com ou sem modificações, ou iniciar procedimentos próprios que resultem em sanções concomitantes, consecutivas ou subsequentes ao período da penalidade já aplicada.

Por fim, deve-se ressaltar que embora a instituição possa simplesmente não acatar a decisão de sancionamento imposta por outro agente financiador, na hipótese em que a parte considere a decisão inconsistente, esta possui a obrigação de notificar os demais signatários, evitando que qualquer das partes viole os termos do acordo celebrado.

3.Da Extensão das sanções ao âmbito nacional

Valendo-se das considerações contidas nos itens anteriores, verifica-se que as sanções aplicadas pelo Banco Mundial, embora possam ser transpostas a outros organismos de financiamento e vice-versa, têm seus efeitos direcionados à possibilidade ou não de o acusado / sancionado ser elegível para um projeto que conte com recursos disponibilizados pelo próprio ente sancionador.

Nesse sentido, verifica-se que as Diretrizes para Aquisições de Bens, Obras e Serviços Técnicos Financiados por Empréstimos do BIRD e Créditos e Doações da AID, pelos Mutuários do Banco Mundial17 estabelece uma participação bastante abrangente de interessados em projetos financiados, impedindo, inclusive, que o Mutuário – no caso, a Administração contratante – limite a participação de possíveis proponentes nas licitações financiadas. O longo trecho deste documento vale a transcrição:

Elegibilidade

1.8 Para estimular a concorrência, o Banco permite que empresas e pessoas físicas de todos os países ofereçam bens, obras e serviços técnicos para os projetos financiados pelo Banco. As condições de participação deverão se limitar às que forem essenciais para garantir a capacidade da empresa de cumprir o contrato em questão.

1.9 Em relação a qualquer contrato a ser financiado, no todo ou em parte, por um empréstimo do Banco, o Banco não permite que o Mutuário negue a participação em um processo de aquisição ou a outorga de contrato a uma empresa por motivos que não estejam relacionados a: (i) sua capacidade e recursos para cumprir inteiramente o contrato ou (ii) situações de conflito de interesses nos termos dos parágrafos 1.6 e 1.7 acima.

1.10 Como exceção ao disposto nos parágrafos 1.8 e 1.9:

(a) As empresas de um país ou os bens manufaturados em um país poderão ser excluídos se, (i) uma lei ou norma oficial proibir o país do Mutuário de estabelecer relações comerciais com esse país, desde que o Banco entenda que essa exclusão não prejudicará a eficácia da concorrência para o fornecimento dos bens, obras e serviços técnicos necessários, ou se (ii) em cumprimento à decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o país do Mutuário proibir a importação de bens e pagamentos em favor de um determinado país, pessoa física ou entidade. Quando o país do Mutuário proibir pagamentos a uma determinada empresa ou pela aquisição de bens específicos, a fim de cumprir tais normas, essa empresa poderá ser excluída.

(b) As empresas ou instituições estatais do país do Mutuário poderão participar no país do Mutuário somente mediante comprovação de que (i) são jurídica e financeiramente autônomas, (ii) operam de acordo com a legislação comercial e (iii) não são agências dependentes do Mutuário ou do Submutuário.

(c) Uma empresa declarada inelegível pelo Banco, nos termos do parágrafo 1.16(d) destas Diretrizes ou das políticas de combate à corrupção e procedimentos de sanções do Grupo do Banco Mundial, não poderá receber um contrato financiado pelo Banco nem beneficiar-se de tal contrato, seja financeiramente ou de outra maneira, durante o prazo fixado pelo Banco18. (Grifos adicionados)

Conforme cláusula geral de elegibilidade em destaque, as pessoas físicas ou jurídicas que tenham sido sancionadas pelo Banco Mundial com pena de exclusão (que as tornam inelegíveis) não poderão se beneficiar, de qualquer forma, de contratos financiados com recursos dessa instituição. Note-se que o conteúdo da restrição tem considerável abrangência, abarcando a ideia de “benefício”, financeiro ou não, por parte do interessado, o que implica, a depender da interpretação concedida, na vedação tanto à participação direta do certame, como a eventuais subcontratações pela empresa vencedora.

Deve-se ressaltar, contudo, que os efeitos de eventuais sanções em licitações nacionais financiadas pelo Órgão Sancionador só serão válidos se, quando da sua aplicação, tiverem sido observados os princípios fundamentais constitucionais que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro.

Isso porque, não se pode considerar válida uma sanção que tenha inobservado os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como da proporcionalidade e razoabilidade da reprimenda frente ao caso concreto. É nesse sentido que Marçal Justen Filho19 observa que as regras dos organismos internacionais podem e devem ser aplicadas desde que sejam prevalentes a soberania nacional e a indisponibilidade dos interesses fundamentais.

Diante disso, pode-se dizer que a sanção de exclusão aplicada pelo Banco Mundial pode impedir que a parte sancionada participe, de forma direta ou indireta, de quaisquer contratações que contem com recursos disponibilizados por essa instituição, a que título for (empréstimos, financiamentos ou outras modalidades de crédito), desde que precedida de uma série de procedimentos que garantam a defesa do interessado e respeitem as garantias fundamentais previstas na Constituição Federal e no ordenamento jurídico brasileiro.

Por outro lado, é importante esclarecer que a sanção aplicada pelo Banco Mundial, a princípio, não impede que a parte sancionada participe de licitações financiadas com recursos de outras instituições assemelhadas, tendo em vista que a exclusão cruzada, conforme exposto no tópico anterior, não é automática, e depende da observância de determinados requisitos. Se a sanção de exclusão impede que o interessado participe de licitações financiadas com recursos internacionais nos termos definidos acima, este não deve ser o caso em licitações integralmente nacionais, ou mesmo internacionais, mas sem o emprego de qualquer recurso disponibilizado por tais organismos.

Isso porque, a regra geral concebida pela lei 8.666/93 está voltada à vasta participação de interessados, em razão da consagração do princípio da ampla competitividade, que impede quaisquer restrições que não estejam essencialmente relacionadas à garantia da obtenção da melhor proposta, como se extrai do artigo 3º, da norma:

Art. 3o. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.

  • 1o. É vedado aos agentes públicos:

I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5o a 12 deste artigo e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991;

II – estabelecer tratamento diferenciado de natureza comercial, legal, trabalhista, previdenciária ou qualquer outra, entre empresas brasileiras e estrangeiras, inclusive no que se refere a moeda, modalidade e local de pagamentos, mesmo quando envolvidos financiamentos de agências internacionais, ressalvado o disposto no parágrafo seguinte e no art. 3o da Lei no 8.248, de 23 de outubro de 1991.

Conforme leciona Celso Antonio Bandeira de Mello20, a licitação visa alcançar duplo objetivo: proporcionar as entidades governamentais possibilidades de realizarem o negócio mais vantajoso e assegurar ampla competição entre ofertantes. E diante desses objetivos e do conteúdo do dispositivo legal supra, a própria Lei de Licitações estabeleceu precisamente as hipóteses de restrição de participação de interessados, estando elas relacionadas: (i) aos impedimentos expressos contidos em seu artigo 9º; e, (ii) às regras de habilitação contidas em seu artigo 27 e seguintes. Tenha-se em mente que, mesmo nestes casos, não houve a predisposição de se limitar a participação sem qualquer motivo lógico. Pelo contrário, em ambas as situações tem-se presente a notória intenção de assegurar a observância de um princípio ponderado como o mais relevante, senão vejamos.

O artigo 9º, da lei 8.666/9321, ao trazer um rol exaustivo de vedações / impedimentos de participação visa, essencialmente, assegurar a isonomia entre os interessados, impedindo que proponentes que possam ter acesso indevido a informações obtenham alguma vantagem frente aos demais. O teor do dispositivo legal não deixa dúvidas quanto a esta finalidade:

Art. 9oNão poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:

I – o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica;

II – empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado;

III – servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação.

  • 1o. É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.
  • 2o. O disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração.
  • 3oConsidera-se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo-se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários.

As regras de habilitação, por sua vez, mais do que impedir ou limitar a participação de interessados, têm por fim a garantia de uma boa contratação, prevendo as condições suficientes de habilitação jurídica, regularidade fiscal e trabalhista, qualificação técnica e qualificação econômico-financeira, para que o proponente seja considerado apto a contratar com o Poder Público.

Sendo a interpretação destas normas associada ao princípio geral da ampla competitividade, é certo afirmar que a vedação à participação de licitante inelegível pelo Banco Mundial (ou entes equiparados) em certames que não possuam qualquer financiamento, além de não contar com qualquer respaldo legal, violaria uma série de princípios constitucionais, não podendo, por isso, ser considerada legítima.

Desse modo, o que se pode concluir, da análise da Constituição Federal, legislação brasileira, das diretrizes do Banco Mundial e até mesmo dos demais organismos internacionais, é que os efeitos das sanções por ele aplicadas somente serão expansíveis e atingirão as licitações nacionais que contenham recursos disponibilizados pelo ente sancionador, de modo que qualquer vedação genérica de participação com base em tal sanção deverá ser considerada ilegal e, portanto, passível de questionamento judicial.

________________

1 Art. 42 (…) §5º Para realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior.

2 O Banco Mundial foi criado em 27/12/1944, sendo considerado, ainda hoje, referência de organismo de financiamento internacional com relação a outras entidades equiparadas.

3 Nesse sentido, vide clique aqui. Acesso em 05/06/2019.

4 Regimentos Internos disponíveis em: clique aqui. Acesso em 05/06/2019.

5 Cf.: “A brief history of the sanctions regime”, contido no Anexo do documento “World Bank Group Sanctions Regime: An overview”. Disponível em: clique aqui. Acesso em 20/05/2019.

6 Normativos disponíveis em: clique aqui. Acesso em 05/06/2019.

7 Cf. Bank Directive: Sanctions for Fraud and Corruption in Bank Financed Projects.

8 Cf. Seção II, item “q”, do documento Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Finance Projects.

9 Cf. item 4, do documento Guidelines on Preventing and Combating Fraud and Corruption in Program for Results Financing.

10 A descrição do procedimento sancionatório a cargo do Banco Mundial tem seu detalhamento no documento Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Finance Projects.

11 Destaque-se que os procedimentos sancionatórios a cargo do Banco Mundial admitem negociações entre as partes até que sobrevenha decisão final, podendo o interessado colaborar para mitigar / afastar as sanções aplicáveis.

12 Cf. Item 9.2, do documento Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Financed Projects.

13 O Banco Mundial possui um Programa de Divulgação Voluntária (Voluntary Disclosure Program – “VDP”), para que aqueles que não estejam sob investigação delatem condutas inapropriadas. Como benefício, o delator não será sancionado pelas condutas informadas, nem terá sua identidade revelada a terceiros.

14 Cf. Seção II, item “a”, do documento Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Financed Projects.

15 Tradução livre: “Cross-Debarment. The WBG may recognize and enforce the debarment decisions of other multilateral development banks in accordance with the Agreement for Mutual Enforcement of Debarment Decisions dated April 9, 2010 (as it may be amended, supplemented or otherwise revised with Board approval from time to time). The Board may, from time to time, authorize the addition of a particular multilateral development bank to the existing list of multilateral development banks whose debarment decisions the Bank generally recognizes for cross debarment. Management decides whether the WBG will recognize and enforce in respect of each particular debarment decision of such multilateral development banks in accordance with such Agreement. The Sanctions System may also entertain sanctions proceedings based on referrals of debarment decisions relating to fraud and corruption in connection with WBG corporate procurement”.

16 Disponível em: clique aqui. Acesso em 21/05/2019.

17 Disponível em: clique aqui. Acesso em 22/05/2019.

18 Estas mesmas disposições constam do Regulamento de Aquisições para Mutuários de Operações de Financiamento de Projetos de Investimento, de julho/2016; nas Diretrizes para Seleção e Contratação de Consultores Financiadas por Empréstimos do BIRD e Créditos e Doações da AID pelos Mutuários do Banco Mundial, de janeiro/2011, bem como nos editais padrões usados pelo Banco Mundial, todos disponíveis no link anterior.

19 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª Edição. São Paulo: Dialética, 2012. p. 675.

20 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 524.

21 Os artigos 38 e 44, da Lei Federal nº 13.303/2016 (“Lei das Estatais”), apesar de mais abrangentes, possuem conteúdo semelhante, adequado à natureza jurídica destas instituições. Os regulamentos editados pelas estatais comumente trazem a cópia destes dispositivos.

________________

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010. P. 524.

Bank Procedure: Sanctions Proceedings and Settlements in Bank Financed Projects, disponível em clique aqui. Acesso em 05/06/2019.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 15ª Edição. São Paulo: Dialética, 2012. p. 675.

Policies and Procedures fo The World Bank, disponível em clique aqui. Acesso em 05/06/2019.

_______________

 

Artigo originalmente publicado no site Migalhas, em 12.06.2019.