ANS e os desafios da saúde suplementar

por Joaquim Augusto Melo de Queiroz

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

 

O setor de saúde suplementar está no centro da arena nacional. O reajuste nos valores dos planos de saúde ressoou com veemência na sociedade. O julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a natureza do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também ganhou as manchetes dos jornais nas últimas semanas. O momento é de ebulição. E em diferentes frentes e cenários da saúde suplementar.

A recente entrada em vigor da Lei nº 14.307/2022 é uma das novidades que movimentou o segmento. Trata-se da lei que alterou os prazos e o procedimento para a atualização da lista das coberturas obrigatórias pelos planos de saúde. No jargão técnico, a lista é denominada Rol de Eventos e Procedimentos em Saúde, ou rol da ANS. A expressão é sofisticada, mas o seu objetivo simples: elencar os medicamentos e processos que deverão necessariamente ser cobertos pelos planos de saúde.

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

O rol da ANS é a vedete do momento. Em 8 de junho foi retomado e concluído o julgamento pelo STJ sobre a natureza do rol (taxativo ou exemplificativo). O tema causou furor e mobilizou parcela razoável da sociedade civil. Prevaleceu a tese de que o rol é taxativo, comportando excepcionalidades, desde que preenchidos determinados requisitos. Emboranão tenha sido proferida em um recurso repetitivo, valendo apenas para as partes do processo, a decisão vem recebendo críticas em relação aos contornos da modulação realizada pelo STJ. A tendência é de que a controvérsia prossiga. Eventualmente até o Supremo Tribunal Federal (STF).

A despeito do frenesi, é preciso parcimônia e reflexão. Alterações significativas moldarão o formato da saúde suplementar nos próximos anos. A expectativa é a de que a regulação possa avançar, mas há a necessidade de aprofundamento das discussões em relação a temas espinhosos. O aprimoramento do processo de atualização do rol da ANS é justamente um deles.

A Lei nº 14.307/2022 desponta nesse contexto. Foi ela que modificou os prazos e a sistemática para a atualização das coberturas obrigatórias pelas operadoras de saúde. Imprimiu, em síntese, nova dinâmica de atualização contínua do rol. Paralelamente, diminuiu o tempo de análise pela agência reguladora e introduziu regras e etapas no procedimento para a atualização. Reduziu, por exemplo, o prazo para a apreciação de pedidos de incorporação de medicamentos para o tratamento de câncer (de uso oral), impondo o limite de 120 dias para a análise, prorrogável por mais 60 dias. Para outros tipos de medicamentos o prazo agora é de 180 dias, prorrogável por mais 90 dias.

O recente regramento deflagrou a escalada de pedidos para a inclusão de novas tecnologias no rol para o tratamento de diversos tipos de câncer. Existem razões de natureza terapêutica e econômica para tanto. O câncer, como se sabe, é uma doença extremamente agressiva. Dias podem ser decisivos para um desfecho favorável. Pacientes e familiares têm plena consciência dessa urgência. E o senso de premência é um dos fatores que tem impulsionado a indústria farmacêutica a submeter regulamente pedidos de incorporação desses medicamentos. Assim como o atrativo econômico inerente a esse mercado em expansão.

Terapias inovadoras para o combate ao câncer exigem investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento. Raras são as moléculas pesquisadas que efetivamente se tornam medicamentos. E há, logicamente, alto custo no processo de desenvolvimento desses novos medicamentos que necessita ser remunerado.

A redução dos prazos para as análises pela ANS também pode ter contribuído para o incremento do número de novos pedidos. Isso porque a previsibilidade dos prazos viabiliza melhor sistematização dos procedimentos necessários para a submissão dos pleitos. Sobretudo para a coordenação das evidências científicas que embasarão o pedido de incorporação.

Há, contudo, desafios consideráveis ao panorama atual. De um lado, a manutenção do apuro técnico nas avaliações. De outro, a pressão para o cumprimento dos novos prazos. E, ainda, a necessidade de uniformização dos parâmetros de decisão utilizados pela ANS.

Esse processo de análise fundamenta-se, em suma, em um mecanismo conhecido como a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). Trata-se, em breve resumo, de ferramenta multidisciplinar para auxiliar a tomada de decisão dos gestores em saúde.

A ATS engloba a avaliação de instrumentos de evidência científica (revisões sistemáticas e metanálises), estudos clínicos, estudos observacionais, além da apreciação de estudos econômicos. Os econômicos abordam principalmente a relação custo-efetividade da tecnologia e o impacto financeiro da sua incorporação. É justamente a apreciação o desse complexo acervo documental que suscita questionamentos a respeito das decisões da ANS.

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos. Já houve avanços, mas ainda há reservas relevantes quanto à ausência de uniformidade nas decisões. Em processos recentemente avaliados observou-se, por exemplo, interpretações dissonantes por parte da ANS a respeito de tecnologias semelhantes. Esse tipo de distorção levanta dúvidas quanto à sistemática utilizada pela agência. E pode macular a imagem do procedimento decisório, especialmente pela atuação de segmentos interessados em eventualmente barrar a inclusão de novas tecnologias.

O momento é chave. A ANS acaba de iniciar uma importante consulta pública (CP nº 99/2022) para a edição de resolução normativa que regulará aspectos essenciais da atualização do rol. É imprescindível, portanto, a participação de todos os stakeholders envolvidos no processo de incorporação nessa consulta pública. O estágio atual é de transição do modelo, sendo que a nova formatação impactará parcela significativa da população.

Artigo publicado originalmente em 25.07.2022, no jornal Valor Econômico.