STF derruba punição a empresas para atraso no pagamento de férias. Entenda

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a Súmula 450 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que previa que o empregador era obrigado a pagar em dobro a remuneração de férias, inclusive o terço constitucional, sempre que o pagamento fosse feito fora do prazo de dois dias antes do descanso do trabalhador.

Ao declarar a inconstitucionalidade da súmula, o STF invalidou todas as decisões não transitadas em julgado que tenham aplicado o entendimento. A súmula se baseava no artigo 137 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que prevê o pagamento em dobro quando as férias não são concedidas dentro do prazo de 12 meses desde que o direito foi adquirido. O TST ampliou esse entendimento para abranger também as situações de atraso no pagamento.

— A decisão afetará grande número de ações trabalhistas, favorecendo os empregadores, considerando a ausência de sanção ao pagamento do dobros das férias, nos termos da decisão — explicou Mariana Dias Vapozoli, especialista em Direito Trabalhista no Giamundo Neto Advogados.

Interpretação restritiva

Para os ministros do Supremo, não cabe ao Tribunal Superior do Trabalho alterar a abrangência de uma norma para alcançar situações que não estavam previstas no texto legislativo, principalmente quando a norma disciplina uma punição e, portanto, deveria ter interpretação restritiva.

O governador de Santa Catarina propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) contra a súmula no Supremo. O relator, ministro Alexandre de Moraes, havia extinto a ação, sem resolução do mérito. O governador de Santa Catarina recorreu e, por maioria dos votos, a pauta foi ao plenário.

— Para os empregadores, a decisão pode significar uma redução relevante em casos em que se discutia o pagamento em dobro de férias não quitadas no prazo previsto no artigo 145 da CLT (dois dias que antecedem o início das férias) — disse Ricardo Christophe da Rocha Freire, sócio do Gasparini Nogueira de Lima Barbosa Advogados e especialista em Direito do Trabalho.

Para Bruno Minoru Okajima, especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório Autuori Burmann Sociedade de Advogados, mesmo antes da análise pelo STF, alguns ministros do TST já vinham considerando que o pagamento em dobro só deveria ser aplicado quando o atraso por parte do empregador não pudesse ser considerado ‘ínfimo’.

— A CLT dispõe expressamente que o empregador pagará a remuneração das férias em dobro na hipótese em que o período de descanso não for concedido ao empregado nos 12 meses subsequentes ao término do período aquisitivo, sem qualquer menção à eventual aplicação de sanção, caso o empregador não efetue o pagamento da contraprestação das férias no prazo. Para concluir pela aplicação da mesma penalidade ao empregador também na hipótese de inobservância do prazo de dois dias para pagamento, o TST entendeu que tanto a obrigação de pagar as férias, quanto a de conceder o período de descanso, de forma concomitante, são indispensáveis para o efetivo gozo das férias pelo empregado — afirmou.

Ele ainda ressaltou que a reforma trabalhista trouxe a possibilidade de fracionamento das férias em três períodos, mediante acordo entre patrão e empregado, o que leva a atrasos eventuais, que “não podem acarretar em punição por empecilhos burocráticos”.

 

Matéria originalmente publicada no Extra, em 10/08/2022.

Congresso IBDiC grandes obras no país: Evento reúne especialistas e autoridades do setor de construção e infraestrutura

Congresso IBDiC grandes obras no país: Evento reúne especialistas e autoridades do setor de construção e infraestrutura

A 10ª edição do Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito da Construção (IBDiC) traz à tona os principais temas que afetam o setor da construção e infraestrutura no Brasil, além de discutir o contexto em que se inserem os novos desdobramentos do mercado.

A programação prevê uma abordagem de temas atuais, como riscos na construção de obras lineares, mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, cláusula de resolução de disputas em contratos de construção, aspectos controvertidos dos Dispute Boards, mudanças nos contratos de construção e, ainda, participação de lideranças femininas no setor.

“Trataremos da realidade das grandes obras de infraestrutura no Brasil, com palestrantes nacionais e internacionais com larga experiência no setor”, explica Victor Madeira Filho, presidente do IBDiC.

Os palestrantes confirmados incluem Victor Madeira Filho, Marcelo Botelho de Mesquita, Carlos Ari Sundfeld, Napoleão Casado Filho, Blanca G. de La Torre, Marcela Radovic, Vânia W. Kleiman, Beatriz Rosa, Ane Elise Peres, Eliana Baraldi, Pedro Ribeiro, Philip Bruner Julian Bailey, Roberto Hernandez, Cristiano Castilhos, Ricardo Medina Salla, Fernando Marcondes, Augusto B. de Figueiredo, Leonardo Toledo da Silva, Thiago M. Nunes, Giuseppe Giamundo, Andrea Chao, Marcelo Fonseca, Flávio Ribeiro Bettega, Luis E. Roman, Julio Cesar Bueno, Cláudia Levy, Gustavo Scheffer, Luciana Tito, Carolina Barreto, Thiago Moreira, Adriana Sarra, Flávia Tâmega, Alexandre Aroeira r Caio Campello, dentre outros.

“O setor da construção e da infraestrutura é altamente dinâmico e repleto de riscos e desafios, sendo imprescindível debatermos essas mudanças no Brasil e no resto do mundo, bem como formas de enfrentamento em relação a tais riscos e dificuldades”, afirma o presidente do instituto.

As inscrições para o evento podem ser realizadas até o dia 30 de agosto.

Serviço

X Congresso Internacional IBDiC
Data: 1º e 2 de setembro
Horários: 09h00 às 18h50 (1º/9) e 9h00 às 17h30 (2/9)
Local: Hotel Pullman – São Paulo (SP)
Inscrições: neste link

https://grandesconstrucoes.com.br/Noticias/Exibir/congresso-ibdic-grandes-obras-no-pais

ANS e os desafios da saúde suplementar

por Joaquim Augusto Melo de Queiroz

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

 

O setor de saúde suplementar está no centro da arena nacional. O reajuste nos valores dos planos de saúde ressoou com veemência na sociedade. O julgamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a natureza do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) também ganhou as manchetes dos jornais nas últimas semanas. O momento é de ebulição. E em diferentes frentes e cenários da saúde suplementar.

A recente entrada em vigor da Lei nº 14.307/2022 é uma das novidades que movimentou o segmento. Trata-se da lei que alterou os prazos e o procedimento para a atualização da lista das coberturas obrigatórias pelos planos de saúde. No jargão técnico, a lista é denominada Rol de Eventos e Procedimentos em Saúde, ou rol da ANS. A expressão é sofisticada, mas o seu objetivo simples: elencar os medicamentos e processos que deverão necessariamente ser cobertos pelos planos de saúde.

 

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos

O rol da ANS é a vedete do momento. Em 8 de junho foi retomado e concluído o julgamento pelo STJ sobre a natureza do rol (taxativo ou exemplificativo). O tema causou furor e mobilizou parcela razoável da sociedade civil. Prevaleceu a tese de que o rol é taxativo, comportando excepcionalidades, desde que preenchidos determinados requisitos. Emboranão tenha sido proferida em um recurso repetitivo, valendo apenas para as partes do processo, a decisão vem recebendo críticas em relação aos contornos da modulação realizada pelo STJ. A tendência é de que a controvérsia prossiga. Eventualmente até o Supremo Tribunal Federal (STF).

A despeito do frenesi, é preciso parcimônia e reflexão. Alterações significativas moldarão o formato da saúde suplementar nos próximos anos. A expectativa é a de que a regulação possa avançar, mas há a necessidade de aprofundamento das discussões em relação a temas espinhosos. O aprimoramento do processo de atualização do rol da ANS é justamente um deles.

A Lei nº 14.307/2022 desponta nesse contexto. Foi ela que modificou os prazos e a sistemática para a atualização das coberturas obrigatórias pelas operadoras de saúde. Imprimiu, em síntese, nova dinâmica de atualização contínua do rol. Paralelamente, diminuiu o tempo de análise pela agência reguladora e introduziu regras e etapas no procedimento para a atualização. Reduziu, por exemplo, o prazo para a apreciação de pedidos de incorporação de medicamentos para o tratamento de câncer (de uso oral), impondo o limite de 120 dias para a análise, prorrogável por mais 60 dias. Para outros tipos de medicamentos o prazo agora é de 180 dias, prorrogável por mais 90 dias.

O recente regramento deflagrou a escalada de pedidos para a inclusão de novas tecnologias no rol para o tratamento de diversos tipos de câncer. Existem razões de natureza terapêutica e econômica para tanto. O câncer, como se sabe, é uma doença extremamente agressiva. Dias podem ser decisivos para um desfecho favorável. Pacientes e familiares têm plena consciência dessa urgência. E o senso de premência é um dos fatores que tem impulsionado a indústria farmacêutica a submeter regulamente pedidos de incorporação desses medicamentos. Assim como o atrativo econômico inerente a esse mercado em expansão.

Terapias inovadoras para o combate ao câncer exigem investimentos maciços em pesquisa e desenvolvimento. Raras são as moléculas pesquisadas que efetivamente se tornam medicamentos. E há, logicamente, alto custo no processo de desenvolvimento desses novos medicamentos que necessita ser remunerado.

A redução dos prazos para as análises pela ANS também pode ter contribuído para o incremento do número de novos pedidos. Isso porque a previsibilidade dos prazos viabiliza melhor sistematização dos procedimentos necessários para a submissão dos pleitos. Sobretudo para a coordenação das evidências científicas que embasarão o pedido de incorporação.

Há, contudo, desafios consideráveis ao panorama atual. De um lado, a manutenção do apuro técnico nas avaliações. De outro, a pressão para o cumprimento dos novos prazos. E, ainda, a necessidade de uniformização dos parâmetros de decisão utilizados pela ANS.

Esse processo de análise fundamenta-se, em suma, em um mecanismo conhecido como a Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). Trata-se, em breve resumo, de ferramenta multidisciplinar para auxiliar a tomada de decisão dos gestores em saúde.

A ATS engloba a avaliação de instrumentos de evidência científica (revisões sistemáticas e metanálises), estudos clínicos, estudos observacionais, além da apreciação de estudos econômicos. Os econômicos abordam principalmente a relação custo-efetividade da tecnologia e o impacto financeiro da sua incorporação. É justamente a apreciação o desse complexo acervo documental que suscita questionamentos a respeito das decisões da ANS.

Os critérios empregados pela agência para avaliar as tecnologias precisam ser claros e objetivos. Já houve avanços, mas ainda há reservas relevantes quanto à ausência de uniformidade nas decisões. Em processos recentemente avaliados observou-se, por exemplo, interpretações dissonantes por parte da ANS a respeito de tecnologias semelhantes. Esse tipo de distorção levanta dúvidas quanto à sistemática utilizada pela agência. E pode macular a imagem do procedimento decisório, especialmente pela atuação de segmentos interessados em eventualmente barrar a inclusão de novas tecnologias.

O momento é chave. A ANS acaba de iniciar uma importante consulta pública (CP nº 99/2022) para a edição de resolução normativa que regulará aspectos essenciais da atualização do rol. É imprescindível, portanto, a participação de todos os stakeholders envolvidos no processo de incorporação nessa consulta pública. O estágio atual é de transição do modelo, sendo que a nova formatação impactará parcela significativa da população.

Artigo publicado originalmente em 25.07.2022, no jornal Valor Econômico.

Alta de custos pode atrasar obras de infraestrutura, e concessionárias tentam rever contratos

Alta de insumos encarecem projetos de infraestrutura, bandeira da campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Concessões tentam rever contratos

A alta de até 80%, desde o início do ano passado, no preço de insumos fundamentais para projetos de infraestrutura virou um problema para concessionárias de rodovias, ferrovias e aeroportos e uma dor de cabeça para o governo a menos de três meses da eleição.

Asfalto, aço e diesel, entre outros itens ligados à construção civil, dispararam em meio ao processo inflacionário global agravado pela guerra na Ucrânia. A alta nos custos ameaça frear obras das concessionárias, que falam em revisão de contratos num momento em que o governo está mais interessado em mostrar máquinas trabalhando. Construtoras que tocam obras públicas têm as mesmas dificuldades.

As concessionárias têm alertado o governo de que os custos mais altos podem atrasar obras e até prejudicar serviços de manutenção, com consequências para usuários. Esperam algum tipo de compensação para cumprirem metas assumidas nos leilões.

A lista de aumentos com forte peso no caixa das empresas é encabeçada pelo cimento asfáltico de petróleo, um dos materiais mais usados em qualquer projeto de rodovias. O insumo subiu 80% nos últimos 18 meses. Mas a alta de preços da construção civil se espalhou para itens como aço, tubos de PVC, ligantes betuminosos, madeira, cobre e óleo diesel.

As empresas de construção também reclamam dos preços dos insumos, como vergalhões, arames de aço ao carbono e cimento. Este último, somente no primeiro semestre, teve reajuste médio de 16,84%.

Em geral, as empresas tentam convencer o governo sobre a necessidade de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Isso pode significar, na prática, aumento de tarifas e de prazos estabelecidos nos contratos, entre outras medidas. Há problemas em concessões antigas e também nas celebradas no governo de Jair Bolsonaro (PL), que busca a reeleição em outubro.

— Existem, sim, problemas detectados no fluxo de caixa das concessionárias. O importante é que haja a construção da solução — diz Marco Aurélio Barcelos, diretor-presidente da Associação Brasileira das Concessionárias de Rodovias (ABCR).

Ele reforça que obras podem atrasar: — Sem dúvida, sem mudanças, é possível falar em atraso, porque não tem conta que se pague. O risco que corre é o cronograma ficar comprometido.

Juro complica situação

Uma onda de revisão de contratos pode atingir em cheio uma das possíveis vitrines de Bolsonaro no ano eleitoral: a área de infraestrutura, que alçou o ex-ministro Tarcísio Gomes de Freitas (Republicanos) à condição de candidato bolsonarista ao governo do Estado de São Paulo.

Em 2021, por exemplo, o governo federal assinou três concessões de rodovias: BR-116/101, entre São Paulo e Rio de Janeiro; BR-153/080/414, que abrange regiões de Goiás e Tocantins; e BR-163/230, cuja área contempla Mato Grosso e Pará.

O remédio aplicado pelo Banco Central para combater a inflação, a alta dos juros, dificulta ainda mais a situação com o aumento do custo dos financiamentos.

— A situação é muito difícil, até porque o problema dessa inflação não se resolve com taxas de juros elevadas. O caso de rodovias é bastante significativo. Serviços de manutenção e conservação de estradas são afetados, assim como projetos em andamento — diz o presidente da Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), Venilton Tadini.

Fernando Paes, diretor-executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), diz que a alta do diesel levou a entidade a pedir à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) uma revisão extraordinária dos tetos tarifários.

Ele afirma que o setor é muito impactado pelos “fortes e inesperados aumentos do preço do diesel”, que move as máquinas nos canteiros de obras, e cobra resposta rápida da agência:— O impacto da alta dos principais insumos para investimentos em ferrovias, assim como rodovias, portos e aeroportos, certamente demandará revisão dos contratos com previsão de investimentos.

Ele explica que um dos argumentos usados pelas concessionárias é o de que os reajustes anuais dos tetos tarifários seguem o IPCA ou o IGP-DI. Esses índices, enfatiza, não refletem a real inflação de custos do setor, cujos insumos estão subindo bem acima da média. — Temos a nossa inflação, que não é a inflação do dia a dia. O preço do aço subiu cerca de 70% em 2021 — exemplifica Vicente Abate, presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer).

Romaria em Brasília

Ao GLOBO, o Ministério de Infraestrutura e a ANTT confirmaram que têm tratado do tema com as concessionárias, mas informaram que, até o momento, não chegou nenhum pedido formal de revisão contratual. Porém, essa escalada de preços não cria um problema só para os contratos de concessões. Também encarecem as operações de construtoras que executam obras públicas. As empresas do setor tem feito romaria em Brasília em busca de reajustes nos contratos.

“O Ministério da Infraestrutura acompanha as eventuais variações de preços de insumos que possam afetar o setor. O sistema de orçamentação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) é baseado no Sistema de Custos Referenciais de Obras (Sicro), cuja atualização é periódica e é amplamente utilizado como referencial de custos para obras rodoviárias”, informou a pasta em nota.

A Associação Nacional das Empresas Administradoras de Aeroportos (Aneaa) informa que acompanha com apreensão a escalada dos preços dos insumos para a construção civil, com aumentos expressivos desde meados de 2020.

“As concessionárias do setor têm de cumprir metas contratuais de investimento em ampliação da infraestrutura e a alta, em alguns casos de mais de 50%, observada nos preços de materiais pesados impacta fortemente as previsões de custos estabelecidas nesses contratos de concessão”, afirma em nota.

 

Aeroporto foi devolvido

Parte dos aeroportos administrados pela iniciativa privada conseguiu reequilibrar contratos neste ano, após o forte impacto dos primeiros anos da pandemia. Uma das empresas que pediu revisão e não teve êxito, a Changi decidiu partir para uma medida mais drástica: devolver a concessão do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio.

A decisão acabou levando o governo a tirar o Aeroporto Santos Dumont, no Centro do Rio, do pacote de terminais a serem concedidos neste ano, atrasando ainda mais investimentos no setor. Os terminais cariocas só devem ir a leilão no ano que vem.

O advogado Frederico Favacho, sócio do escritório Santos Neto, acredita que o cenário pode gerar disputas na Justiça: — Quando há inflação no custo das obras, normalmente, não há espaço para repasse automático nos contratos firmados com os poderes públicos, que estão amarrados nos termos dos editais que os precederam. Isso pode levar a uma onda de judicialização desses contratos em busca do reequilíbrio econômico.

Especialista em contratos de infraestrutura, Giuseppe Giamundo Neto defende revisão. — Trata-se de uma problemática que atinge boa parte das concessões de infraestrutura com obras em desenvolvimento. Houve descolamentos inesperados dos padrões históricos de índices relacionados a materiais como asfalto, aço galvanizado, cimento Portland, dentre outros. É algo extraordinário e absolutamente imprevisível, que tem onerando demasiadamente o fluxo de caixa, daí a necessidade de imediata correção — argumenta o sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.

Ernesto Tzirulnik, especialista em contratos de infraestrutura e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da USP, avalia que a alta nos insumos se encaixa no critério de fator “imprevisível ou de consequências incalculáveis”, com entendimento, segundo ele, já consolidado do Tribunal de Contas da União (TCU).

 

Matéria de Eliane Oliveira, originalmente publicada em 18.07.2022, no O Globo (https://oglobo.globo.com/economia/negocios/noticia/2022/07/alta-de-custos-pode-atrasar-obras-de-infraestrutura-e-concessionarias-tentam-rever-contratos.ghtml)

Revisão da convenção de arbitragem da CCEE: perspectivas e debates

Revisão da convenção de arbitragem da CCEE: perspectivas e debates

Por Camillo Giamundo e Joaquim Melo de Queiroz

Recentemente, os agentes da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica aprovaram a revisão da convenção de arbitragem, documento que regula as regras para a utilização da arbitragem como mecanismo de solução de determinadas disputas. As novas regras atualizam a Convenção Arbitral da CCEE que vigorava desde 2007 e trazem modificações positivas e pontos que merecem avaliação, especialmente no atual cenário de expansão do setor.

É inegável que o setor de energia elétrica vivencia uma euforia. Há uma multiplicação de projetos de geração de energia de fontes renováveis, em boa parte voltados ao atendimento de grandes consumidores que integram a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Este fenômeno se intensificou a partir de 2016, quando se iniciou uma expressiva migração de grandes empresas para o denominado Mercado Livre (Ambiente de Contratação Livre). Neste ambiente, as empresas podem formalizar contratos de compra e venda de energia elétrica diretamente com geradores e agentes comercializadores, desfrutando de maior liberdade para estabelecer volumes, preços, prazos e outras condições comerciais para o seu suprimento. A tendência é que este movimento se intensifique. E a aceleração da transição energética, com a migração de matrizes energéticas estruturadas em fontes de combustíveis fósseis para fontes renováveis, desempenha papel importante nesta mudança.

Nesse cenário de ampliação do número de agentes, espera-se uma majoração natural do número de disputas entre eles e, consequentemente, do número de procedimentos arbitrais. A lógica é cartesiana: quanto maior a quantidade de agentes e de relações contratuais, maior o número de potenciais disputas. Nesta conjuntura, a revisão da Convenção de Arbitragem da CCEE vem em boa hora.

Em 19 de outubro de 2021, foi realizada a 68ª Assembleia Geral Extraordinária da CCEE [1]. Dentre os temas deliberados constou a revisão da Convenção de Arbitragem.

Um grupo de trabalho formado pela CCEE e representantes de todas as associações do setor dedicou-se, desde 2017, a avaliar os principais pontos que demandariam a atualização da convenção arbitral.

O diagnóstico realizado pelo grupo de trabalho apontou quatro eixos principais que justificavam a revisão da norma:

“(I) A falta de competividade entre as Câmaras, dada a atual exclusividade da Câmara da Fundação Getúlio Vargas (FGV);

(II) A possível afetação do mercado decorrente de decisões arbitrais proferidas em processos com questões bilaterais;

(III) A necessidade de consolidar a regra já adotada que fixa as hipóteses em que não se aplica a Convenção Arbitral, decorrentes da própria Convenção de Comercialização (instituída pela Resolução Normativa Aneel nº. 109/2004 e revogada recentemente pela Resolução Normativa Aneel nº 957/2021); e
(IV) Aprimoramentos decorrentes da própria evolução do mercado e da experiência alcançada desde a entrada em vigor da atual Convenção Arbitral.”

A partir desta radiografia, foram indicadas as principais modificações propostas para o novo texto da Convenção Arbitral:

“(I) Pluralidade de Câmaras: elaborou-se uma cláusula em que se previu a possibilidade de os agentes escolherem qualquer Câmara Arbitral que esteja previamente homologada pela CCEE, criando-se competitividade entre Câmaras e flexibilidade operacional para os agentes. Desta forma, após aprovação, será criado um procedimento para a homologação e desabilitação das Câmaras Arbitrais, com a colaboração do mesmo grupo de trabalho que participou da elaboração da nova proposta. O procedimento de homologação/desabilitação será aprovado no âmbito da CCEE e tornado público, sem necessidade de passar por nova Assembleia;
(II) Conflitos arbitráveis: são aqueles definidos na Convenção de Comercialização. A atual Convenção Arbitral replica o texto da Convenção de Comercialização. A proposta de alteração sugere a mera remissão à Convenção de Comercialização, evitando-se que eventual alteração tenha que ser integralmente reproduzida na Convenção Arbitral;
(III) Exceção à via arbitral para solucionar conflitos bilaterais: a alteração proposta tem como objetivo o aprimoramento do texto vigente uma vez que a redação atual deixava os agentes em dúvida quanto a esta exceção. O texto foi aprimorado para esclarecer que a Convenção Arbitral não se aplica aos conflitos bilaterais que não afetam direitos de terceiros e, por consequência, não repercutem nas operações da CCEE;
(IV) Exceção à via arbitral para cobrança, pela CCEE, de valores inadimplidos, inclusive penalidades: alterou-se a Convenção Arbitral para consolidar essa regra já adotada pela CCEE. Os dispositivos inseridos ratificam a utilização da via judicial pela CCEE para cobrança de valores inadimplidos por agentes ou não agentes, inclusive penalidades;
(V) Mecanismo de Proteção ao Mercado: propõe-se mecanismo apto a garantir que o Tribunal Arbitral exija garantias das partes em relação aos efeitos financeiros das decisões arbitrais que afetem terceiros. A proposta permite à CCEE requerer ao Tribunal Arbitral a prestação de garantias idôneas nos casos em que a operacionalização da decisão venha a impactar outros agentes que não estejam envolvidos no conflito;
(VI) Suspeição de árbitros e prazo de quarentena: buscou-se ampliar o rol de potenciais árbitros a serem selecionados, com a alteração das hipóteses de impedimento por suspeição. A sugestão de modificação permite que os critérios de afastamento dos árbitros sejam analisados pelas partes, as quais poderão recusar ou consentir com a indicação do árbitro diante da revelação efetuada. Em relação a ex-prestador de serviço, ex-colaborador e ex-consultor de umas das partes, o prazo da quarentena será reduzido de dois anos para seis meses;
(VII) Divulgação de banco de jurisprudência: com o objetivo de dar previsibilidade sobre as decisões arbitrais, a alteração propõe criar repositório público de ementas por parte das Câmaras Arbitrais, respeitando a confidencialidade das partes envolvidas; e
(VIII) Regras de transição: a inserção de cláusulas específicas sobre a vigência da Convenção Arbitral a partir da homologação pela Aneel. Além disso, também é reforçada em cláusula específica que a utilização da via judicial pela CCEE para cobrança de valores inadimplidos por agentes ou não agentes, inclusive penalidades, é a regra estabelecida desde a vigência da atual Convenção Arbitral e que é ratificada pela nova Convenção Arbitral”.

As alterações propostas convergem para temas candentes e atuais debatidos pela comunidade arbitral: publicidade de decisões, confidencialidade e dever de revelação do árbitro.

Especificamente em relação às disputas no setor de comercialização de energia elétrica, dois pontos demandam reflexão: a definição clara dos conflitos arbitráveis e as hipóteses de exceção à via arbitral.

A delimitação dos conflitos arbitráveis é disposta na cláusula 1ª da minuta da nova Convenção de Arbitragem:

“CLÁUSULA 1ª. Nos termos da legislação e regulamentação vigentes, são considerados conflitos (‘CONFLITOS’) passíveis de resolução através da Arbitragem aqueles definidos na Convenção de Comercialização vigente.”

A solução alvitrada é elegante, ao contornar a necessidade de contínua atualização da convenção de arbitragem, mas pode ensejar eventuais interpretações divergentes quanto ao seu efetivo alcance. Atualmente, os conflitos que devem ser objeto de solução pela via arbitral são elencados no artigo 44 da Resolução Normativa Aneel nº 957/2021:

“Artigo 44. Os Agentes da CCEE e a CCEE deverão dirimir, por intermédio da Câmara de Arbitragem, todos os conflitos que envolvam direitos disponíveis, nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, nas seguintes hipóteses:
I – conflito entre dois ou mais Agentes da CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da Aneel ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela;
II – conflito entre um ou mais Agentes da CCEE e a CCEE que não envolva assuntos sob a competência direta da Aneel ou, na hipótese de tratar, já tenha esgotado todas as instâncias administrativas acerca do objeto da questão em tela; e
III – sem prejuízo do que dispõe cláusula específica nos CCEARs, conflito entre Agentes da CCEE decorrente de Contratos Bilaterais, desde que o fato gerador da divergência decorra dos respectivos contratos ou de Regras e Procedimentos de Comercialização e repercuta sobre as obrigações dos agentes contratantes no âmbito da CCEE”.

Diante do desenvolvimento do mercado, e maior complexidade de suas estruturas de controle, a definição objetiva das matérias arbitráveis pode vir a ensejar questionamentos. Um exemplo prático e atual: eventuais medidas preventivas para mitigação de riscos de inadimplência, conforme proposta recentemente apresentada pela CCEE [2], estariam sujeitas à discussão pela via arbitral? Esta é uma questão a ser ponderada, inclusive em razão da Estrutura de Salvaguardas Financeiras com mecanismos mitigadores de perdas decorrentes da inadimplência no Mercado de Curto Prazo, também proposta na aludida Nota Técnica da CCEE. A conformação destas estruturas propostas poderia gerar questionamento acerca do que efetivamente deveria ser objeto de escrutínio pela via arbitral.

De outra parte, a precisa delimitação do fato gerador para o enquadramento dos conflitos previstos no inciso III do artigo 44 da REN 957/2021 poderia deflagrar interpretações dissonantes, especialmente em situações em que convém ao requerido postergar a decisão sobre o conflito.

De todo modo, e a despeito de questionamentos que possam surgir, caberá sempre ao tribunal arbitral realizar esta avaliação, em consonância com o princípio kompetenz-kompetenz, referendado inclusive em recente precedente do Superior Tribunal de Justiça [3]. Em relação à exceção à via arbitral nas demandas propostas pela CCEE, em que se exija o pagamento de valores inadimplidos de agentes, deve ser avaliada se de fato esta seria a solução mais adequada:

“Parágrafo 3º. Esta CONVENÇÃO não se aplica às demandas em que a CCEE exija valores inadimplidos de agentes ou não agentes, incluindo penalidades, as quais são promovidas exclusivamente perante o Poder Judiciário”.

A justificativa para esta exceção encontra-se disposta no parágrafo 4° da cláusula 1ª:

“Parágrafo 4º. Com base no artigo 113, §2º, e no artigo 421-A, I, Código Civil, as partes declaram que a CCEE, ao exigir valores inadimplidos, age na condição de substituta processual da coletividade, com base nos artigos 18, Código de Processo Civil, artigo 4º, Lei n. 10.848/2004, artigo 2º, VII, do Decreto 5.177/2004, artigo 3º do Decreto 5.163/2004; artigo 2º, §2º, da Resolução Normativa/ANEEL 545/2013; em razão disso, as respectivas ações serão propostas perante o Poder Judiciário”.

Em primeiro lugar, há uma possível incongruência nesta sistemática tendo em vista que a inadimplência de um determinado agente ocasionaria justamente efeitos às operações da CCEE, o que atrairia a incidência da regra prevista no parágrafo 1ª da cláusula 1ª, reafirmando a jurisdição arbitral para a solução do conflito:

“Parágrafo 1º. Esta CONVENÇÃO não se aplica a conflitos entre Agentes da CCEE, decorrentes de contratos bilaterais, que não afetem direitos de terceiros estranhos ao negócio jurídico objeto do conflito e, por consequência, não repercutem nas operações da CCEE”.

Em segundo lugar, em razão dos predicados inerentes à arbitragem, a resolução de disputas dessa natureza pelo procedimento arbitral poderia permitir maior celeridade para a ulterior recuperação de eventual crédito dos agentes impactados, caso confirmado pelo tribunal arbitral (ainda que sua satisfação dependa de posterior cumprimento de sentença arbitral).

Por fim, o fato de a CCEE figurar como substituta processual dos demais agentes credores (caso assim se repute a sua atuação [4]), ou mesmo como representante processual, não a impediria, a priori, de formular o requerimento de instauração do procedimento arbitral em seu próprio nome, desde que expressamente autorizada por eles.

Esta é uma questão delicada e que, de certa forma, se correlaciona com a necessidade de aprimoramento da sistemática de negative option usualmente empregada pela CCEE. De acordo com este procedimento, a CCEE encaminha aos agentes impactados comunicado solicitando a manifestação quanto ao seu desinteresse em ser representado pela Câmara em futura demanda de cobrança. Em caso de ausência de resposta do agente, é presumida a outorga de autorização à CCEE para representá-lo.

Existem questionamentos quanto a este formato sob o fundamento de que a CCEE poderia representar os agentes apenas nas hipóteses de manifestação expressa, e positiva, de seu associado conferindo-lhe poderes para tanto.

De outra parte, argumenta-se que a legitimidade da CCEE estaria escorada nos dispositivos assinalados no parágrafo 4° da cláusula 1ª da minuta da Convenção de Arbitragem.

De todo modo, cabe a reflexão quanto à possibilidade de modificação da Convenção de Arbitragem para que a CCEE promova a cobrança, em nome de seus associados, por meio de procedimento arbitral, sobretudo diante da celeridade deste mecanismo de solução de disputas.

Em suma, as propostas de atualização da Convenção de Arbitragem da CCEE são positivas e devem ser louvadas. Dentre elas, destaca-se a possibilidade de utilização de outras Câmaras, o que ampliará a autonomia dos agentes diante de maior número de opções. Deve ser saudada ainda a proposta de instituição de um repositório de precedentes, o que conferirá maior segurança jurídica aos agentes em suas tomadas de decisões, na medida em que poderão mapear melhor a orientação das Câmaras sobre determinados conflitos do setor.

Por fim, cabe assinalar que proposta de atualização da Convenção de Arbitragem encontra-se atualmente em análise pela Aneel. Espera-se que a sua homologação ocorra de forma célere, especialmente diante da corrida para a implementação de novas usinas de geração de fontes renováveis, deflagrada pela janela regulatória aberta pela Lei nº 14.120/2021. Estes empreendimentos são em boa parte financiados por contratos de comercialização de energia elétrica (Power Purchase Agreements — PPAs). Há, portanto, a possibilidade de expressivo número de conflitos em breve, vinculados a estes contratos. Seria recomendável que a nova Convenção de Arbitragem já estivesse em vigor para disciplinar estas disputas.

NOTAS
[1] https://www.ccee.org.br/documents/80415/919507/ATA%2068%C2%AA%20AGE_19_10_2021.pdf/995a9de2-5757-1afa-e32e-d8cf6a8b0e2d
[2] Conforme a Nota Técnica NT CCEE 06735/2021, de 16 de dezembro de 2021:
https://www.ccee.org.br/documents/80415/919440/Nota%20T%C3%A9cnica%20CCEE%20-%20CCEE06735-2021_site.pdf/79bd0de3-916b-c75b-e545-0b8ecc709144
[3] https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=140974127&registro_numero=201800037380&peticao_numero=201900612834&publicacao_data=20211210&formato=PDF
[4] Existe divergência quanto à atuação da CCEE como substituta processual de seus associados, conforme decisões proferidas no Recurso Especial nº 1.511.140/PR: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=123096605&registro_numero=201500083740&peticao_numero=202000345744&publicacao_data=20210318&formato=PDF

Revista Consultor Jurídico, 13 de abril de 2022

Publicado originalmente na Revista Consultor Jurídico