por Camillo Giamundo

Contratos administrativos baseados em moedas estrangeiras podem ser revistos para fins de reequilíbrio econômico-financeiro em situação de excepcional variação cambial

Não é incomum, principalmente em contratos firmados com o Poder Público envolvendo empreendimentos de infraestrutura, insumos e bens importados, que o orçamento e a proposta comercial do particular contratado estejam fixados nos valores do dólar ou do euro.

Na maioria das vezes, em tais situações, a flutuação da variação cambial dentro dos patamares normais de volatilidade deve ser absorvida pelo contratado, restando a ele arcar com os riscos do negócio e os custos decorrentes de sua atividade empresarial.

Todavia, em situações de imprevisibilidade ou de previsibilidade cujas consequências sejam incalculáveis, a onerosidade excessiva que a alta da cotação da moeda estrangeira cause a um particular contratado permite, conforme precedentes jurisprudenciais, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com o Poder Público.

É exatamente a situação que se verifica, no Brasil, no atual cenário econômico decorrente da pandemia do COVID-19.

Segundo o Banco Central, o Brasil encerrou o ano de 2019 com a cotação de compra do dólar no valor de R$ 4,03 e o euro no valor de R$ 4,52 (31/12/2019), época em que o coronavírus sequer era uma preocupação mundial, sendo apenas uma noticiada epidemia local da China. De dezembro de 2019 ao final de janeiro de 2020, a cotação de ambas as moedas deu um salto de aproximadamente vinte centavos, encerrando o dólar, no primeiro mês do ano, a R$ 4,26 e o euro a R$ 4,72 (31/01/2020).

As moedas seguiram forte tendência de alta no mês de fevereiro, com significativa elevação a partir da confirmação do primeiro caso de coronavírus no país, noticiado em 26/02[1], com dólar a R$ 4,47 e euro a R$ 4,91. Especialistas já admitiam a hipótese da moeda americana na casa dos R$ 5,00, o que veio a ser confirmado em 17 de março, que encerrou o dia na cotação de R$ 5,04, data em que o país já contabilizava 349 pessoas infectadas pelo novo vírus e as Bolsas europeias despencavam para o menor nível desde 2012, enquanto a pandemia de coronavírus se alastrava pela Europa[2].

O mês de abril não fugiu da tendência dos meses anteriores, e encerrou a primeira semana com o dólar cotado a R$ 5,29 e o euro a R$ 5,72.

Vê-se, portanto, que da última cotação de 2019 das moedas estrangeiras até os primeiros dias de abril, houve alta de aproximadamente 31% para o dólar, e pouco mais de 26% para o euro.

Em termos práticos, em apenas três meses a variação das moedas significou um indubitável impacto nas transações comerciais internacionais e, para o objetivo do presente artigo, relativo desequilíbrio nos contratos públicos que tenham sido firmados na base orçamentária estrangeira, na ordem de aproximadamente 30%.

Situações como a presente reclamam a aplicação da teoria da imprevisão, que incide na ocorrência de fatos externos ao contrato, imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, que impactam o equilíbrio econômico-financeiro de forma alheia à vontade de ambas as partes contratuais.

Para exemplificar, o Tribunal de Contas da União, em 05/07/2017, por meio do Acórdão 1.431/2017, sob relatoria do Ministro Vital do Rêgo, decidiu sobre a possibilidade do reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos em razão de variações cambiais, estabelecendo novos parâmetros e definições, especificamente nos casos de contratos que tenham por objeto principal a prestação de serviços executados no Brasil, com a característica de importação de bem ou serviço. Naquela decisão, o TCU reconheceu que a variação cambial inesperada e significativa pode ser suficiente para ensejar eventual reequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado, com a limitação de que tal procedimento se dê exclusivamente em relação aos insumos humanos e materiais adquiridos na localidade de prestação dos serviços.

De acordo com o Relator, três são os critérios para considerar a variação cambial um fator apto a ensejar a recomposição de preços em contratos públicos: (1) constituir-se em um fato com consequências incalculáveis, ou seja, cujas consequências não sejam passíveis de previsão pelo gestor médio quando da vinculação contratual; (2) ocasionar um rompimento severo na equação econômico-financeira impondo onerosidade excessiva a uma das partes. Para tanto, a variação cambial deve fugir à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante; e (3) não basta que o contrato se torne oneroso, a elevação nos custos deve retardar ou impedir a execução do ajustado, como prevê o art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993.

O Superior Tribunal de Justiça, em caso análogo, também decidiu pela indenização do particular contratado, por conta da desvalorização cambial da moeda brasileira em 1999. No Recurso Especial nº 1.433.434, o Ministro Sérgio Kukina destacou que a mudança “abrupta” na política cambial, naquele caso concreto, caracterizou-se como situação extraordinária, sendo justa a repactuação dos termos ou, visto que o contrato já tinha sido cumprido, a indenização pelas perdas sofridas.

E nem poderia ser diferente. o dever de o Poder Público ressarcir o contratado pelo desequilíbrio da equação econômico-financeira da avença decorre dos preceitos constitucionais, trazidos pelo artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal, que assegura ao particular que contrata com a Administração Pública a manutenção “das condições efetivas da proposta”, bem como o artigo 65 da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), por sua vez, dispõe sobre a possibilidade de alteração dos contratos administrativos “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da administração para a justa remuneração (…) objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato”.

Ademais, o direito ao reequilíbrio decorre, igualmente, de outro princípio jurídico: o que proíbe o enriquecimento sem causa, expressamente consignado no artigo 884, do Código Civil, visto que a Administração Contratante se beneficiaria dos serviços prestados pelo privado sem, contudo, remunerá-lo adequadamente.

Não há dúvidas de que o atual cenário enfrentado pelo país pode significar, em muitos contratos públicos, a aplicação da teoria da imprevisão, haja vista a alta volatilidade e crescimento da moeda americana e do euro frente ao real, de modo que, a depender do caso concreto, o restabelecimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato é verdadeiro dever do Poder Público e direito do particular contratado, cabendo a adoção das medidas jurídicas necessárias para o reconhecimento de tal garantia, caso haja impedimento pela via administrativa e voluntária.

[1] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-confirma-1-caso-de-coronavirus-medidas-de-cuidado-continuam-as-mesmas,70003210635

[2] https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2020/03/17/bolsas-europeias-abrem-em-alta.htm

 

Artigo originalmente publicado no Portal Fator Brasil, em 28.04.2020.