Covid-19 e os contratos locatícios comerciais: uma análise da viabilidade da revisão judicial

por Maria Laura Pereira Lourenço de Oliveira

É de amplo conhecimento que a covid-19, doença infectocontagiosa causada pelo novo coronavírus, tem se propagado rapidamente, infectado mais de meio milhão de pessoas e levado a óbito cerca de 27 mil pessoas no mundo (até o último dia 27/3), razão pela qual foi qualificado como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, a fim de conter a crescente contaminação, o poder público de inúmeros municípios e estados tem determinado o fechamento total dos locais que prestam serviços não essenciais, em especial empreendimentos comerciais (lojas, academias, escolas, shoppings etc.), medida essa cujos efeitos, a médio e longo prazo, têm gerado preocupação até dos empreendedores mais otimistas.

Pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Serviços (CNS) prevê que o comércio perderá cerca de R$ 80 bilhões em faturamento, gerando dois milhões de demissões de funcionários do setor. Como exemplo, uma grande rede varejista informou que, diante do fechamento das suas 175 lojas, prevê receita zero pelo período de três meses.

Uma das alternativas encontradas para enfrentar esse período de falta de receitas é a revisão das condições de determinados contratos, em especial do contrato locatício, de modo a reequilibrá-lo de acordo com a situação econômico-financeira dos contratantes, seja pela minoração ou pela concessão de período de carência dos encargos locatícios, ante a ocorrência de fato superveniente, imprevisível que onera excessivamente o locatário.

Os contratos de locação de imóveis urbanos comerciais, salvo exceções, são regulados pela Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato), a qual prevê um mecanismo de reequilíbrio contratual de ajuste do locativo para a realidade de mercado, após 3 anos de vigência do contrato ou da última alteração do valor do aluguel, mediante ajuizamento de Ação Revisional de Aluguel (art.19), a qual dispensa a demonstração de quaisquer acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

Não obstante, é certo que não há qualquer previsão para reequilibrar o contrato, quando não preenchidos os requisitos objetivos exigidos pela Lei do Inquilinato, o que restringe significativamente a aplicação daquele dispositivo. Assim, ante a lacuna normativa da referida Lei, aplica-se, subsidiariamente, o Código Civil (Lei 10.406/03), em especial as disposições relativas à onerosidade excessiva, enquanto instrumento de efetivação da boa-fé objetiva, função social do contrato, solidariedade e justiça contratual.

Nesse ponto, cumpre destacar que, em que pese no âmbito dos contratos empresariais ser precipitado admitir a rescisão e ou revisão de contratos com base na onerosidade excessiva, ainda que decorrente de situações extraordinárias e imprevisíveis, é certo que a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) inseriu previsão expressa no Código Civil (art. 421-A, inciso III) a respeito do cabimento limitado e excepcional da revisão contratual.

O Código Civil prevê a possibilidade de o contrato ser resolvido ou modificado em razão de alterações fáticas relevantes e imprevisíveis que tornem a execução do pacto excessivamente onerosa para uma das partes, nos art. 478, 479 e 480.

Explica o jurista Carlos Alberto Bittar que a teoria da imprevisão contemplada pelo Código Civil pela Teoria da onerosidade excessiva é a “radical modificação do estado de fato do momento da contratação (base objetiva do negócio) determinada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, dos quais decorra onerosidade excessiva no cumprimento da obrigação e, assim, a possibilidade de revisão contratual”.

Nesse sentido, são três os requisitos para aplicação da onerosidade excessiva: (i) contratos de execução continua e diferida no tempo, tais como os contratos locatícios comerciais; (ii) alteração substancial da situação fática subjacente ao contrato em razão de circunstâncias extraordinárias, imprevistas e imprevisíveis, tal como a ocorrência de uma pandemia a causar o fechamento total dos estabelecimentos comerciais; (iii) onerosidade excessiva a um dos contratantes, assim como os locatários que necessitam despender elevadas montas para satisfação de suas obrigações perante fornecedores, funcionários e locador, sem, entretanto, terem receita suficiente para fazer frente a esse passivo, em razão da impossibilidade de exercerem sua atividade comercial.

Embora o locatário excessivamente onerado tenha direito à resolução, seu concreto exercício representará, uma via demasiadamente prejudicial aos contratantes se o contrato ainda puder ser reajustado de modo a se recuperar o equilíbrio contratual originário, considerando a situação fática atual ⎼ excepcional ⎼ de alteração substancial do poder econômico do contratante.

Assim, considerando a legislação aplicável supramencionada, o Juízo, diante do pleito revisional, para além de observar a garantia da autonomia privada e da liberdade contratual, deve promover a efetiva defesa da concorrência, da liberdade econômica, da função social do contrato a fim de evitar desequilíbrios excessivos de uma parte em detrimento da outra, em consonância com as diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal (art. 170) e pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019).

Ademais, incumbe ao Juízo ponderar os efeitos práticos da decisão (art. 20 do Decreto Lei 4.567/1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), em especial os impactos econômico-financeiros para a sustentabilidade do exercício da atividade econômica desenvolvida pelo empreendimento comercial locatário, bem como aos outros milhares de contratos locatícios que indiretamente seriam afetados pela decisão, e o efeito em cadeia que a negativa da revisão pode implicar, considerando a situação fática sem precedentes que afeta o setor.

No mais, insta destacar que a revisão contratual, ante os efeitos da pandemia à atividade empresarial, somente será cabível nas hipóteses em que o contrato não tenha previamente alocado referido risco superveniente e imprevisível a qualquer das partes, conforme preceitua a parte final do art. 393 do Código Civil, caso em que deve ser observado a disposição contratual pelos contratantes, consoante disposição do art. 421-A, inciso II, do Código Civil.

Destarte, ainda que não haja disposição expressa acerca do cabimento de revisão contratual dos contratos locatícios comerciais, por aplicação subsidiária do Código Civil, é possível a aplicação da teoria da imprevisão, pela latente onerosidade excessiva decorrente da superveniência de fato imprevisível, a justificar excepcionalmente a revisão judicial, em observância não somente ao Código Civil, como a Constituição Federal, a Lei de Liberdade Econômica e a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Por fim, sem prejuízo de todo o exposto, previamente ao ajuizamento de qualquer ação, em observância à boa-fé objetiva, inerente às relações contratuais, é salutar a importância que o locatário realize o contato prévio com o locador, de preferência por notificação extrajudicial, a fim de informar a situação econômico-financeira de seu empreendimento e indicar proposta razoável e proporcional, em prestígio ao equilíbrio contratual.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 03.04.2020.

Primeiras críticas à Medida Provisória nº 936 – 1º de abril de 2020

por Luiz Fernando Plens de Quevedo

Ainda no 1º dia do mês de abril de 2020, foi publicada a MP 936 que, além de instituir o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, ainda complementou a MP 927/2020. Na oportunidade, apesar do Programa destinar-se à MANUTENÇÃO do Emprego e da Renda, acabou por instituir o Benefício Emergencial de PRESERVAÇÃO do Emprego e da Renda.

Independentemente da injustificável variação entre as denominações empregadas ao programa e ao benefício, percebe-se injustificável abandono da estratégia prevista no art. 18 da MP 927/2020, o qual, para ser adequado ao enfrentamento dos impactos às medidas de contenção da circulação da população em resposta ao dramático avanço do pandemia, bastaria ter revogado seu §5º, mantendo-se aplicável o artigo 2º-A, do Programa de Seguro-Desemprego, que prevê o pagamento da bolsa de qualificação profissional. Ou seja, revogado o § 5º, art. 18, MP 927, todo empregado com contrato suspenso receberia, pelo tempo correspondente, as parcelas do seguro desemprego, garantido o período máximo de quatro meses.

Ao possibilitar ao empregador a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses, sem qualquer contrapartida por parte do Governo aos empregados, a resposta apresentada pela MP 927/2020 mostrou-se inadequada, e seu art. 18 foi revogado em menos de 24 horas. A nova Medida Provisória também permite a suspensão do contrato de trabalho, agora por apenas 60 dias, ou a redução do salário, proporcionalmente à redução da jornada de trabalho, pelo prazo de 90 dias, agora com garantia de contrapartida aos empregados por parte do Governo, através do seguro desemprego.

Contudo, enquanto o art. 18, MP 927, grosso modo, partiu da hipótese do art. 476-A, CLT – “O contrato de trabalho poderá ser suspenso, por um período de dois a cinco meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional oferecido pelo empregador, com duração equivalente à suspensão contratual, mediante previsão em convenção ou acordo coletivo de trabalho e aquiescência formal do empregado, observado o disposto no art. 471 desta Consolidação” – excluindo a exigência de negociação coletiva, a MP 936 partiu da hipótese do art. 503, da CLT – “É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região” – o qual não contém previsão de negociação coletiva para sua aplicação. Ocorre que o art. 503, CLT, deve ser interpretado em consonância com a Constituição. Especificamente o inciso VI do art. 7º – “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.”

Ainda que fosse possível questionar a constitucionalidade do art. 18 da MP 927, não há dúvida alguma quanto a inconstitucionalidade do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, uma vez que a exigência de negociação coletiva para redução de salários está prevista no inciso VI do art. 7º, da Constituição. Incluindo-se, aqui, a nova hipótese de suspensão do contrato de trabalho, na medida em que, na dinâmica da MP 936, a suspensão segue a escala de redução salarial, que parte da percentagem de mínima de 25%, sendo possível reduções de 50% a 70%, alcançando a redução máxima de 100%, com a respectiva suspensão do contrato de trabalho.

Apesar de todo empregador poder celebrar acordo individual para reduzir salário e jornada em até 25%, segregou-se em três faixas salariais a exclusão da exigência de negociação coletiva para as demais percentagens de redução salarial e suspensão do contrato de trabalho. Na hipótese, empregados que recebem até três salários mínimos (R$ 3.135,00) e empregados com diploma universitário e salário superior ao dobro do teto dos benefícios previdenciários (R$ 12.202,12), poderão ter os respectivos salário e jornada de trabalho alteradas, até suspender os contratos, por ato individual e sem assistência sindical. Os empregados com salário entre R$ 3.135,01 e R$ 12.202,11, ou acima disso, desde que não tenham diploma universitário, somente poderão ter a jornada e salário reduzidos além de 25%, ou suspender os contratos de trabalho, mediante negociação coletiva.

O Secretário Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, em entrevista coletiva por ocasião da apresentação da MP 936, justificou a segregação entre três faixas salariais para evitar maiores perdas aos trabalhadores. Contudo, não justificou a razão pela qual, na hipótese de aplicação do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, por meio de negociação coletiva, independentemente da faixa salarial, haverá efetiva perda de benefício por parte dos empregados, excluindo-se a percepção do seguro desemprego quando a redução salarial não for superior a 25%, ocorrendo redução gradual do benefício que seria recebido pelo empregado, pelo simples fato de ter ocorrido a negociação coletiva. Ou seja, caso o empregado seja assistido pelo seu sindicato, sofrerá imediata redução do benefício ao qual teria direito, caso a negociação estivesse limitada ao âmbito individual.

A hipótese viola o art. 8º da Constituição, especificamente, mas não apenas, os incisos I – “a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical” – e VI – “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”. Ao relacionar a negociação coletiva com a exclusão ou redução proporcional dos benefícios aos quais os empregados terão acesso, a MP 936 incide em nova violação constitucional, o que, definitivamente, coloca em xeque a capacidade do Governo em promover as medidas necessárias e efetivas à garantia dos empregos, com o mínimo de segurança jurídica.

O direito de suspensão de serviços ou rescisão por falta de pagamento da Administração Pública, em contratos administrativos, e o risco de sanção

por Camillo Giamundo e Bruno de Oliveira Cortopassi

O uso do regular direito de suspensão dos serviços ou rescisão do contrato pelo particular, na relação com a Administração Pública, é, muitas vezes, coibido pela ameaça de aplicação ilegal e abusiva de sanções administrativas.

 

O regime jurídico de Direito Administrativo, em virtude dos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, assegura à Administração Pública uma posição de superioridade frente aos particulares contratados, utilizando-se de prerrogativas inexistentes nas relações privadas, as quais são denominadas de “exorbitantes” e que conferem a ela tal posição hierárquica na persecução do interesse coletivo.

Dentre as cláusulas exorbitantes, é frequente a dúvida e discussão acerca do benefício que a Lei Federal 8.666/1993, que regula os contratos administrativos, concede à Administração Pública, a partir da prerrogativa de poder atrasar pagamentos devidos ao particular pelo prazo de até 90 (noventa) dias (art. 78, XV), sujeitando-o a arcar, durante tal período, com os custos e despesas dos serviços que presta sem qualquer possibilidade de paralisação ou diminuição de frente de trabalho, sob pena, inclusive, de aplicação de sanções contratuais (art. 87).

Não obstante, ao possibilitar o atraso – ou inadimplemento – por até 90 (noventa) dias, o artigo 78, inciso XV da lei 8.666/93, garante ao particular a possibilidade de suspender ou rescindir o contrato, caso tal prazo seja superado, assegurado o pagamento dos prejuízos que houver sofrido e dos serviços executados até então (art. 79, §2º e incisos).

Contudo, na prática, verifica-se que não são raras as vezes em que a Administração Pública acaba por não apenas atrasar – e, portanto, inadimplir – o devido pagamento previsto no contrato por prazo superior ao legalmente permitido, mas também por aplicar sanções administrativas ao particular contratado quando este faz uso do exercício de seu direito pela suspensão ou até pela rescisão contratual, extrapolando e abusando da posição que detém.

Embora o particular, quando contratado, seja conhecedor da condição diferenciada que assumirá na relação com a Administração Pública, aceitando as cláusulas exorbitantes previamente dispostas no edital do certame e do futuro contrato, que deve ser anexado ao instrumento convocatório, não se pode admitir que sobre ele recaiam os ônus e prejuízos causados exclusivamente pelo ente contratante sob o subterfúgio da incidência do princípio da supremacia interesse público e de sua indisponibilidade, desequilibrando a equação econômico-financeira e tornando impossível a continuidade de prestação dos serviços, ainda mais por prazo superior ao permitido em Lei, especialmente sob a ameaça de sofrer sanção contratual. Veja-se que o artigo 87 da lei 8.666/93 prevê, como possibilidades, a aplicação de pena de advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração e, a mais gravosa, declaração de inidoneidade, admitindo-se a aplicação conjunta das sanções (§2º), o que, por si só, pode representar grave ameaça ao particular contratado, especialmente aquele que costumeiramente contrata com o Poder Público e pode ser prejudicado por decisões administrativas arbitrárias e ilegais.

Em situações como esta, , em que a Administração Pública contratante restou inadimplente por prazo superior ao limite legal e o particular se utilizou do direito de suspender seus serviços ou de rescindir a relação contratual, afigura-se abusiva e ilegal a aplicação de qualquer sanção por parte da Administração, desafiando-se a intervenção do Poder Judiciário para a imediata suspensão de seus efeitos. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em situação como esta, determinou que a Administração se abstivesse de aplicar sanção em razão da falta de pagamento pelo prazo superior ao previsto no artigo 78, inciso XV da Lei de Licitações. No caso, uma empresa do ramo farmacêutico impetrou Mandado de Segurança pleiteando o afastamento da aplicação de sanções administrativas em razão da suspensão do contrato por decorrência do inadimplemento da Administração Pública. O Relator Carlos Levenhagen fundamentou sua decisão explicando que o regime contratual administrativo, apesar de garantir uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, não pode servir de justificativa para a inobservância das obrigações contratuais e respeito ao art. 78, XV da lei 8.666/93, visto que não se pode aplicar irrestritamente a inoponibilidade dos interesses públicos:

“Como se sabe, o regime contratual administrativo possui uma série de singularidades que se dão diante do caráter primordial da tutela dos interesses públicos, sendo, uma delas, a posição preponderante da Administração dentro da relação contratual, expressão do princípio da supremacia do interesse público (…) Assim, dos elementos consignados nos autos, contata-se que o objeto contratual foi devidamente executado pela contratada, não tendo esta, contudo, recebido a ajustada contraprestação por parte do ente municipal, motivo pelo qual se valeu da prerrogativa do art. 78, XV, da lei 8.666/93. Ainda, não se desincumbiu o Município de demonstrar a existência de fundamento ou fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da impetrante.”
(TJMG – Remessa Necessária-Cv 1.0647.16.003941-6/001, Relator(a): Des.(a) Carlos Levenhagen, 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/12/2017, publicação da súmula em 23/01/2018)

Em sendo assim, evidencia-se ainda ser comum a prática da Administração Pública em avocar o princípio da supremacia do interesse público para se esquivar do cumprimento de suas obrigações contratuais – especialmente aquela prevista no artigo 78, inciso XV da Lei Federal 8.666/93 -, de sorte que caberá ao contratado a adoção de providências necessárias para a suspensão de serviços ou a rescisão do contrato, não podendo ser sancionado em razão do exercício regular de seu direito legalmente garantido, devendo, eventuais arbitrariedades, serem afastadas pelas vias judiciais cabíveis.

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*Camillo Giamundo é especialista e mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, e sócio fundador do escritório Giamundo Neto Advogados.

*Bruno de Oliveira Cortopassi é acadêmico de Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e integrante da equipe de Direito Administrativo do escritório Giamundo Neto Advogados.

 

Artigo originalmente publicado no periódico Migalhas, em 01.04.2020.

A pandemia do coronavírus e seus reflexos iniciais no setor elétrico brasileiro

por Philippe Ambrosio Castro e Silva

Nas últimas semanas, em meio à pandemia deflagrada pela disseminação da covid-19 (novo coronavírus), o mundo globalizado tem sentido os temores concretos de uma grave recessão nos diversos setores da economia.

Por força das incertezas provocadas pela paralisação das atividades econômicas nas mais variadas áreas, em decorrência de medidas de isolamento social impostas pelos governos mundo à fora, a economia já tem começado a manifestar os primeiros sinais da desaceleração brusca que inevitavelmente se poderia esperar de um evento dessa magnitude.

Dentre os setores da economia atingidos se encontra o setor elétrico, que, especificamente no Brasil, tem sofrido severamente com sucessivas crises ao longo da presente década, seja por medidas intervencionistas precipitadas e mal planejadas, seja pela última e recente recessão econômica enfrentada pela economia brasileira, seja por fatores climáticos que impactaram significativamente geradores hidrelétricos anos atrás, seja pela intrincada, complexa e até mesmo defasada legislação que regula o setor, a qual vem estimulando uma crescente judicialização nas mais variadas relações jurídicas sustentadas pelos agentes setoriais.

No caso específico da presente crise que se avizinha, conforme salientado, os primeiros sinais já têm sido demonstrados, tendo em vista a forte redução no consumo de energia em todo o Brasil, em especial por conta da interrupção total ou parcial da atividade industrial.

Tal circunstância já tem provocado movimentações entre os agentes setoriais, sobretudo por parte de grandes consumidores livres que têm se visto impossibilitados de exercer suas atividades e, assim, de consumir os volumes de energia contratados, o que acabará por criar sobras de energia que serão invariavelmente vendidas no mercado spot por preços muito inferiores àqueles praticados em seus contratos.

Situação similar vem ocorrendo com concessionárias distribuidoras de energia, que inevitavelmente não terão a quem suprir os montantes de energia contratados, de modo a ficarem também com sobras significativas de volumes de energia.

Tudo isso, por sua vez, já tem iniciado uma corrida entre os agentes setoriais por meio da invocação de cláusulas de força maior em seus contratos com comercializadores e geradores, a fim de se eximirem do cumprimento de suas obrigações de pagamento aos respectivos vendedores de energia, fato que, por seu turno, tem o condão de criar um efeito cascata de disputas setoriais em procedimentos de arbitragem e mais uma onda de judicialização no setor elétrico, uma vez que comercializadores e geradores também seriam prejudicados com sobras de energia ou com o não cumprimento de seus contratos pelos respectivos compradores, afetando, assim, o equilíbrio-econômico financeiro de suas relações contratuais.

Nesse contexto, compete salientar que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recente e rapidamente editou a Resolução Normativa nº 878/2020, que dispõe sobre as medidas para preservação da prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, em decorrência da calamidade pública atinente à pandemia do novo coronavírus.

A norma em questão versa essencialmente sobre medidas que buscam desonerar e garantir a prestação do serviço de distribuição aos consumidores cativos, que se verão imersos, em grande parte, a dificuldades em arcar com suas obrigações para com as respectivas distribuidoras.

No entanto, em virtude de a deflagração da pandemia e de seus efeitos serem bastante recentes, a agência reguladora ainda não foi capaz de criar mecanismos normativos destinados a dirimir as controvérsias que certamente advirão no futuro próximo, sobretudo entre os agentes de geração, de comercialização e de distribuição.

Assim, na condição de agência reguladora que detém a competência fixada em lei para mediar e resolver os conflitos entre os agentes do setor elétrico, caberá à Aneel zelar pela preservação do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos mantidos pelos agentes setoriais — em especial daqueles que se encontram na “ponta” inicial da cadeia de consumo, isto é, dos agentes geradores —, mediante a adoção de medidas capazes de sanar o possível déficit em suas receitas por conta da invocação de circunstâncias de força maior em seus contratos de comercialização de energia, assim como mitigar possíveis impactos negativos setoriais relacionados com o risco hidrológico (GSF) — para geradores hidrelétricos —, em função de despachos do Operador Nacional do Sistema (ONS) que venham a determinar a redução da geração.

Com isto, evitar-se-á o agravamento das dificuldades econômicas enfrentadas ao longo das últimas e recentes crises setoriais, de modo a não afugentar ainda mais aqueles que pretendem empreender no setor.

Do contrário, uma nova onda de litígios de arbitragem e judiciais surgirá, cabendo ao Poder Judiciário, por omissão da Aaneel, zelar pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos das partes que dele venham a se socorrer, muitas vezes, porém, em detrimento dos interesses de todos os demais agentes setoriais, circunstância que sabidamente tem desafiado o exercício da atividade econômica no setor elétrico nacional.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 30.03.2020.

É tempo de coronavírus e de abuso da requisição administrativa

por Giuseppe Giamundo Neto

A pandemia do coronavírus trouxe à tona o instituto pouco falado da requisição administrativa. Com assento constitucional (art. 5º, XXV), a requisição administrativa é o direito de o Poder Público usar de propriedade particular em caso de iminente perigo público. Como contrapartida, assegura-se ao proprietário do bem indenização ulterior, caso haja dano.

Na esteira da Lei Federal 13.979/2020 que, ao instituir as medidas da União para o enfrentamento da saúde pública contra o coronavírus, estabeleceu a possibilidade de as autoridades adotarem a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas (art. 3º, VII), inúmeros decretos estaduais e municipais têm sido editados para respaldar a utilização de tal prerrogativa por seus respectivos governantes.

Parece inexistir dúvida de que o país está diante de iminente perigo público, o que, em teoria, seria suficiente para satisfazer o requisito constitucional indispensável para a intervenção estatal na propriedade particular em benefício de finalidades coletivas. Ocorre que, levando-se em conta os prejuízos imediatos causados àqueles que têm os seus bens, serviços ou propriedade requisitados, o Poder Público somente pode se valer de tal prerrogativa em última hipótese, isto é, após analisar as alternativas possíveis e verificar inexistir opção menos gravosa.

Observe-se que a mesma Lei 13.979/2020 tornou dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. A desnecessidade de licitação é temporária, aplicando-se enquanto perdurar a situação de emergência. E sequer é necessária a elaboração de estudos preliminares, bastando a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico também simplificado (art. 4º-E).

Portanto, é lógica a conclusão de que o gestor público somente tem a prerrogativa de lançar mão da intervenção na propriedade privada se demonstrar a inviabilidade de realizar a contratação direta, com dispensa de licitação, daquela pessoa natural ou jurídica da qual os bens ou serviços se pretende expropriar.

Infelizmente, contudo, não é o que tem sido visto. Cite-se como bom exemplo a requisição, pela União, de ventiladores de UTI já comprados pelo Município de Recife. Foi necessária uma ordem judicial da Presidência do TRF-5, prolatada no último domingo (22), para que a empresa contratada pela Prefeitura não atendesse à requisição da União e entregasse os respiradores ao Município de Recife. Ainda em Pernambuco, no último dia 19, o Governo do Estado entrou em uma loja de produtos hospitalares na cidade de Recife para recolher máscaras descartáveis a fim de abastecer a rede estadual de saúde.

O previsível pretexto do caráter emergencial e, por consequência, da impossibilidade de se aguardar a realização dos procedimentos prévios à dispensa de licitação raramente se justificarão quando se tem em vista que a Lei 13.979/2020 realmente simplificou o conteúdo do respectivo termo de referência ou projeto básico antecedente à contratação direta. Basta um passar de olhos nos requisitos descritos no art. 4º-E para que isto seja confirmado. Não é exagero retórico dizer que o trabalho e o tempo necessários para proceder à requisição administrativa e à dispensa licitatória são relativamente idênticos.

É abusivo, portanto, além de inadequado e arbitrário, o ato do gestor público que se aproveita do estado de calamidade pública existente para requisitar bens e serviços – especialmente os relacionados à área de saúde –, postergando a contraprestação devida ao requisitado para data futura e incerta, quando poderia muito bem realizar a contratação direta da mesma pessoa natural ou jurídica. Tal conduta, nessas circunstâncias, deve ser combatida pelas vias adequadas, sendo papel do Poder Judiciário coibir os excessos que temos assistido.

Comentários sobre as Medidas Provisórias nºs 927 e 928/2020

Em 22.03.2020, foi publicada a Medida Provisória (MP) n. 927/2020, que dispõe sobre medidas trabalhistas em tempo de calamidade pública, decorrência da pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19). Em 23.03.2020, foi publicada nova Medida Provisória (MP) n. 928/2020 que, dentre outros temas, revogou o artigo 18 da MP 927, que tratava sobre a suspensão do contrato de trabalho por acordo individual pelo prazo de até 4 meses, período no qual o trabalhador não receberia seu salário.

Todas as demais disposições da MP 927 mantiveram-se inalteradas. Assim, a análise geral sobre as medidas apresentadas pelo Governo para enfrentamento das restrições decorrentes do Estado de Calamidade Pública reconhecido no Decreto Legislativo n. 6/2020, sofre pequena revisão.

Mantem-se o reconhecimento, para fins trabalhistas, que a pandemia caracteriza a hipótese de força maior, a atrair a aplicação do artigo 501 e seguintes da CLT.

Os dispositivos previstos na MP se aplicam aos trabalhadores urbanos e rurais, trabalhadores temporários, empregados domésticos, além de conter disposições específicas relacionadas aos contratos de estágio e aprendizes.

A prevalência do que previsto na MP retroage em seus efeitos até 20.03.2020, data em que foi reconhecido o Estado de Calamidade Pública, e tem vigência mínima de 60 dias, prorrogáveis por mais 60, para ser convertida em Lei ordinária, e perderá seus efeitos quando encerrado o Estado de Calamidade Pública, ou sejam, em 31.12.2020, conforme definido no Decreto Legislativo n. 6/2020.

As medidas anunciadas pela a MP são as seguintes: (i) teletrabalho; (ii) férias individuais; (iii) férias coletivas; (iv) aproveitamento e antecipação dos feriados; (v) compensação das horas paradas; (vi) suspensão dos exames médicos periódicos e treinamentos; e (vii) suspensão do recolhimento do FGTS dos meses de março, abril e junho.

 

  1. DECLARAÇÃO GENÉRICA – ART. 2º

Apesar do art. 2º da MP prever que empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, não contém disposição objetiva alguma aplicável aos casos concretos, ainda que contenha disposição a resguardar os limites previstos na Constituição Federal.

Diante da indefinição objetiva contida no art. 2º da MP, especificamente quanto aos limites do que poderá dispor o empregado no referido acordo individual escrito, é certo que sua constitucionalidade e respectiva aplicação nos casos concretos é de todo incerta, sobretudo quando referido acordo individual admitiria a hipótese de preponderar inclusive sobre a Lei (“instrumentos legais”). É plenamente inexequível a opção estabelecida por referido artigo.

 

  1. TELETRABALHO – ARTS. 4º E 5º

A primeira medida viável trazida pela MP foi a possibilidade de alteração do regime presencial de trabalho para o teletrabalho ou home office – caracterizado pelo trabalho realizado de maneira preponderante ou totalmente fora das dependências do empregador, com utilização de meios tecnológicos.

Nos termos da MP, a adoção da modalidade home office ficará a critério do empregador, e não dependerá da celebração de acordo coletivo ou mesmo de acordo individual, bastando expedir notificação escrita ou eletrônica ao empregado, estagiário ou aprendiz, com antecedência mínima de 48 horas.

Uma vez determinada a alteração do regime presencial para o home office, o empregador terá o prazo de 30 dias, para formalizar a alteração do regime de trabalho, por escrito com o empregado, estagiário ou aprendiz, oportunidade em que deverá, necessariamente, prever a responsabilidade pela aquisição, manutenção e fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do serviço à distância, o que envolve o reembolso de despesas arcadas pelo trabalhador com a alteração do regime de trabalho, e definição de valor indenizatório decorrente dos gastos com eletricidade e provedor de internet a serem restituídos mensalmente ao empregado.

Caso o trabalhador não possua os equipamentos e a infraestrutura necessária para o desempenho do trabalho de maneira remota, o empregador poderá fornecer os equipamentos em regime de comodato (empréstimo) e pagar por serviços de infraestrutura (como, por exemplo, eletricidade e provedor de internet), valores que não caracterizarão verba de natureza salarial.

Na hipótese do empregador não conseguir fornecer o material necessário para o desempenho das atividades à distância, o período da jornada normal de trabalho será computado como tempo de trabalho à disposição do empregador. Ou seja, na hipótese de alteração do regime de trabalho, a impossibilidade da prestação de serviços por indisponibilidade material, a remuneração ainda deverá ser paga ao empregado.

No período em que perdurar o trabalho em home office, não haverá obrigação do empregador em controlar a jornada de trabalho do empregado. O período em que o empregado permanecer logado ao sistema da empresa não será considerado como tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, salvo se houver previsão em acordo individual ou coletivo em contrário.

Diante do cenário atual, trata-se de alternativa emergencial para atender ao determinado pela Autoridade Sanitária Federal em relação à restrição de circulação dos trabalhadores, garantindo-se prestação de serviços pela empresa e manutenção dos empregos.

 

  • FÉRIAS INDIVIDUAIS – ART. 6º A 10

A principal alteração promovida pela MP em relação às férias diz respeito ao pré-aviso de 48 (quarenta e oito) horas para concessão das férias ao empregado. Adicionalmente, permite-se a antecipação das férias ao empregado que ainda não completou o período aquisitivo. A concessão das férias demanda que sejam respeitadas as seguintes medidas, priorizando-se os empregados que se encontrem no grupo de risco do coronavírus:

  1. Comunicação ao empregado, por meio escrito ou eletrônico, com antecedência de, no mínimo, 48 horas, com a indicação do período a ser gozado pelo empregado;
  2. Os períodos de fruição das férias não poderão ser inferiores a 5 dias corridos; e
  3. Poderão ser concedidas por deliberação do empregador, ainda que o empregado não tenha adquirido o direito às férias. Ou seja, empregados com menos de 01 ano de contrato e empregados que ainda não atingiram um novo período aquisitivo desde a fruição das últimas férias.

Quanto ao pagamento das férias, a MP também contém disposições que suspendem temporariamente alguns valores:

  1. O pagamento do terço constitucional, adicional ao valor das férias, poderá ocorrer até a data em que é devido o pagamento do décimo terceiro salário, ou seja, até 20 de dezembro de 2020;
  2. O requerimento de conversão de um terço das férias em abono pecuniário estará sujeito à concordância do empregador, aplicando-se o prazo acima; e
  3. O pagamento da remuneração das férias poderá ser efetuado após o início das férias, desde que efetuado até o quinto dia útil do mês subsequente ao início do gozo das férias.

De outro lado, para os profissionais da área de saúde ou aqueles cuja função desempenhada constitui-se como essencial, o empregador poderá suspender a fruição de férias, e até mesmo suspender licenças não remuneradas, mediante comunicação formal da decisão ao trabalhador, por escrito ou por meio eletrônico, preferencialmente com antecedência de 48 horas.

As atividades essenciais estão previstas no Decreto n. 10.282/2020, que incluem serviços médicos e hospitalares, segurança pública e privada, transporte intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e o transporte de passageiros por táxi ou aplicativo, telecomunicações e internet, serviços bancários não presenciais e postais, imprensa, dentre outros listados no referido Decreto.

 

  1. FÉRIAS COLETIVAS – ARTS. 11 E 12

A critério do empregador poderão ser concedidas férias coletivas aos empregados, bastando a notificação do grupo de trabalhadores, via comunicado emitido com antecedência mínima de 48 horas.

A MP estabelece que não se aplicam o limite máximo de períodos anuais e o limite mínimo de dias corridos previstos na CLT, isto é, o gozo de férias coletivas em 2 períodos anuais, desde que nenhum deles seja inferior a 10 dias corridos e, também, dispensa expressamente a comunicação prévia ao Ministério da Economia e ao sindicato da categoria.

Contudo, a MP silenciou sobre a necessidade de afixação de aviso nos locais de trabalho prevista no § 3º do art. 139 da CLT, pelo que entendemos que referida determinação se encontra mantida.

 

  1. ANTECIPAÇÃO DE FERIADOS – ARTIGO 13

Enquanto durar o Estado de Calamidade Pública, o empregador poderá antecipar o gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais (como, por exemplo, Tiradentes, Dia do Trabalhador, Dia da Pátria, Proclamação da República, aniversário municipal) e deverá notificar, por escrito ou por meio eletrônico, o conjunto de empregados envolvidos, com antecedência mínima de 48 horas, mediante indicação expressa dos feriados aproveitados.

O aproveitamento de feriados religiosos (como, por exemplo, feriado de Nossa Senhora Aparecida e Sexta-feira santa) dependerá de concordância do empregado, mediante manifestação em acordo individual escrito.

Diante da inexistência do limite de feriados que poderão ser antecipados, recomendamos que seja limitado ao número máximo de 07 feriados, os quais poderão ser trabalhados após o encerramento do Estado de Calamidade.

 

  1. INTERRUPÇÃO DA ATIVIDADE E HORAS PARADAS – ART. 15

Outra opção trazida pela MP para ser utilizada enquanto perdurar o Estado de Calamidade Pública é a compensação de jornada, por meio de banco de horas, através de acordo individual de trabalho.

Assim, na hipótese de ocorrer a interrupção das atividades, cada empregado poderá celebrar acordo individual de trabalho, oportunidade em que, no período de interrupção das atividades serão computadas as horas não trabalhadas em banco de horas positivo ao empregador, as quais poderão ser compensadas com o acréscimo de trabalho após o retorno das atividades, no prazo de até 18 meses, contado da data de encerramento do Estado de Calamidade Pública.

A compensação do banco de horas poderá ser feita mediante prorrogação da jornada em até 2 horas diárias, em jornada que que não poderá exceder dez horas diárias, pelo que se respeitará o limite de jornada previsto no art. 59 da CLT. O acréscimo das horas na jornada diária poderá ser determinado pelo empregador a qualquer tempo, desde que respeitado o limote de 18 meses após o encerramento da calamidade, independentemente de negociação coletiva.

 

  • SUSPENSÃO DOS EXAMES E TREINAMENTOS OBRIGATÓRIOS – ARTS. 15 A 17

A MP suspendeu a obrigatoriedade de realização dos exames médicos periódicos, sejam ocupacionais, clínicos ou complementares, que deverão ser realizados no prazo de 60 dias, contados a partir de 31.12.2020.

Quanto ao exame demissional, mantém-se obrigatório, exceto na hipótese do exame médico ocupacional mais recente tenha sido realizado há menos de 180 dias.

Suspendeu-se, igualmente, a obrigatoriedade da realização de treinamentos periódicos e eventuais dos atuais empregados, exigidos pelas normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho, os quais poderão ser realizados na modalidade de ensino à distância, cabendo ao empregador a observância dos conteúdos práticos, de modo a garantir a execução das atividades em segurança, ou, se não ocorrerem os treinamentos na modalidade de ensino à distância, deverão ser realizados no prazo de 90 dias, contados a partir de 31.12.2020.

No tangente à CIPA (Comissão Internas de Prevenção de Acidentes), independentemente do prazo de funcionamento, a atual formação poderá ser mantida até o encerramento do Estado de Calamidade Pública. Os processos eleitorais em curso poderão ser suspensos.

 

  • SUSPENSÃO DO RECOLHIMENTO DO FGTS – ARTS. 19 A 25

A MP suspendeu a exigibilidade do recolhimento do FGTS referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020, respectivamente, a todos os empregadores, independentemente de comunicação prévia.

O recolhimento do FGTS deverá ser pago em 06 parcelas, a partir do recolhimento referente ao mês de julho de 2020, valor sobre o qual não incidirá atualização, multa e encargos previstos no art. 22 da Lei n. 8.036/1990. Ou seja, o pagamento dos valores referentes ao FGTS de março a maio poderá ser efetuado em 06 parcelas, recolhidas no período de julho até dezembro de 2020.

Caso o empregador faça a opção pelo parcelamento, (i) o pagamento deverá ser quitado em até 6 parcelas mensais, com vencimento no 7º dia de cada mês, a partir de julho de 2020; e (ii) deverá o empregador declarar-se devedor, junto ao Conselho Gestor do FGTS, até 20 de junho de 2020.

Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho, o valor devido deverá ser pago ao empregado no prazo de pagamento das verbas rescisórias.

Foram prorrogados por 90 dias prazos dos certificados de regularidade com o FGTP emitidos anteriormente à data de entrada em vigor da MP, com a observação de que os parcelamentos de débito do FGTS em curso que tenham parcelas a vencer nos meses de março, abril e maio não impedirão a emissão da referida certificado de regularidade.

Por fim, a MP suspendeu a contagem do prazo prescricional dos débitos relativos a contribuições do FGTS pelo prazo de 120 dias, contado de 20.03.2020.

 

  1. OUTRAS DISPOSIÇÕES EM MATÉRIA TRABALHISTA

Além das disposições vistas anteriormente, a Medida Provisória também prevê:

  1. Prorrogação da jornada de trabalho aos empregados em estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de 12×36, e adoção de escala de horas suplementares entre a 13ª e a 24ª hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado (DSR/RSR) ao empregado;
  2. Compensação de referidas horas, no prazo de 18 meses, contado a partir de 31.12.2020, por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra;
  3. Suspensão dos prazos processuais para apresentação de defesa e recurso no âmbito de processos administrativos originados a partir de autos de infração trabalhistas e notificações de débito de FGTS, por 180 dias, contados de 22.03.2020;
  4. Que os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal;
  5. Prorrogação, a critério do empregador, pelo prazo de 90 dias, após o termo final dos 180 dias contados a partir de 22.03.2020, dos acordos e convenções coletivas vencidos ou vincendos;
  6. A atuação orientadora dos Auditores Fiscais do Trabalho, exceto quanto (i) falta de registro de empregado, a partir de denúncias; (ii) situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação; (iii) ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e (iv) trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil;
  7. Inaplicabilidade do disposto na MP aos trabalhadores em regime de teletrabalho, quanto às regulamentações sobre trabalho em teleatendimento e telemarketing, dispostas na Seção II do Capítulo I do Título III da CLT;
  8. Convalidação das medidas adotadas pelos empregadores que não contrariem o disposto na MP, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor da MP.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Além do previsto na MP 927/2020, há que se rememorar o disposto na Lei n. 13.979/2020, cujas medidas objetivam a proteção da coletividade em virtude do surto de coronavírus.

O parágrafo terceiro, do artigo 3º, da Lei n. 13.979/2020, dispõe que “Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo”.

Isto é, será considerada a falta justificada ao trabalho das pessoas que estiverem submetidas a: (i) isolamento; (ii) quarentena; (iii) que forem submetidas de maneira compulsória a exames médicos, testes laboratoriais, coletas de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos; e (iv) com restrição de circulação, decorrência do retorno de viagens internacionais.

A diferença prevista em Lei quanto à caracterização do isolamento e da quarentena, esclarece que o isolamento é destinado aos trabalhadores contaminados, com diagnóstico positivo, e a quarentena é destinada aos trabalhadores com suspeita de contaminação.

Por isso, em caso de suspeita, a pessoa deve ser encaminhada aos órgãos públicos competentes para realização de exames e, caso seja necessário o afastamento em período superior a 15 dias, deverá ser encaminhada ao INSS.

Porém, caso o empregado teste negativo para a contaminação pelo vírus e, caso a falta seja de apenas um ou alguns dias, ele deverá apresentar o correspondente atestado médico, como já é normalmente feito (art. 6º, parágrafo primeiro, “f”, da Lei n. 605/949), hipótese em que as faltas também serão justificadas e abonadas.

De todo modo, que não se olvide do dever da empresa em zelar pela saúde e segurança de seus empregados (art. 7º, XXII, da Constituição Federal e 157 da CLT), mas, também, que é necessária a tomada de medidas visando à manutenção da saúde econômica das empresa em conciliação à manutenção dos empregos.

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