STJ reafirma a possibilidade de concessionária de rodovia cobrar pelo uso de faixa de domínio de outras concessionárias de serviço público

por Diogo Albaneze Gomes Ribeiro

Analisando os precedentes tanto do STJ (Superior Tribunal de Justiça) quanto do STF (Supremo Tribunal Federal), verifica-se que a possibilidade de cobrança pelo uso de faixas de domínio em rodovias (para passagem de dutos e cabos de telecomunicações ou de outros serviços públicos essenciais) varia de acordo com o fato de a rodovia estar ou não concedida.

Nas situações em que a rodovia continua sendo administrada pelo Ente Federativo, o entendimento caminha no sentido da impossibilidade dessa cobrança, tal como já manifestado pelo STF, no âmbito do recurso extraordinário nº 581.947. Nesse precedente, partiu-se da premissa de que as faixas de domínio público de vias públicas constituem bem público, inserido na categoria dos bens de uso comum do povo – sujeitando-se, sem qualquer dever de indenizar, aos efeitos da restrição decorrente da instalação, no solo, de equipamentos necessários à prestação de serviços púbicos1.

Já nas situações de rodovias concedidas, o entendimento jurisprudencial, sobretudo do STJ, caminha em sentido contrário, admitindo-se expressamente essa cobrança, mesmo de outras prestadoras de serviço público. Mais precisamente, o STJ vem reconhecendo que o art. 11 da Lei 8.987/1995, ao admitir a exploração de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, autoriza a cobrança pelo uso da faixa de domínio da rodovia, inclusive de outra concessionária de serviço público2.

Recentemente, ao julgar o recurso especial nº 1677414/SP, cujo acórdão foi disponibilizado no dia 1º de fevereiro de 2022, a 1ª Turma do STJ voltou a confirmar essa posição, inclusive fazendo o adequado distinguishing com o já mencionado entendimento do STF (RE nº 581.947).

Mais precisamente, registrou o STJ que o entendimento do STF segundo o qual os entes da federação não podem cobrar retribuição pecuniária pela utilização de vias públicas, inclusive solo, subsolo e espaço aéreo para a instalação de equipamentos destinados à prestação de serviço público, não impede que as concessionárias de rodovias realizem a cobrança pela utilização das faixas de domínio, nos termos do art. 11 da Lei 8.987/1995, desde que tal exação seja autorizada pelo poder concedente e esteja expressamente prevista no contrato de concessão, porquanto não houve discussão sobre esta hipótese no RE 581.497.

Ou seja, a jurisprudência do STJ impõe duas condicionantes para a cobrança do uso da faixa de domínio de outras concessionárias, quais sejam: (i) que se trate de rodovia concedida; e (ii) haja previsão no contrato de concessão autorizando a cobrança pelo uso da faixa de domínio.

¹ No mesmo sentido, confiram-se os seguintes precedentes do STJ: AgInt no REsp 1471643/PR, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, 1ª T., j. 13/03/2018, DJe 22/03/2018; REsp. 1.246.070/SP, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe 18.06.2012.

² Int no REsp 1677414/SP, Rel. Min. REGINA HELENA COSTA, 1ª T., j. 08/02/2018, DJe 20/02/2018; AgRg no REsp 1296954/SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 1ª T., j. 17/03/2015, DJe 07/04/2015; AgRg no REsp 1470686/PR, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª T., j. 24/02/2015, DJe 02/03/2015; STJ – REsp 975097/SP, Rel. Min. DENISE ARRUDA, j. 09/12/2009, DJe 14/05/2010.

Artigo originalmente publicado no Portal Agência Infra.

Concessões e PPPs avançam, mas mortalidade segue alta

No ano passado, 125 licitações foram canceladas, e outros 114 projetos foram suspensos ou adiados, aponta a Radar PPP

Os projetos de concessões e Parcerias Público Privadas (PPPs), cada vez mais difundidos no país, ainda enfrentam uma alta taxa de mortalidade. No ano passado, 125 licitações (já com edital lançado) foram canceladas, um aumento de 20% em relação ao ano anterior. Além delas, foram suspensas e adiadas outras 114 iniciativas no ano, segundo levantamento da consultoria Radar PPP.

A situação tem melhorado, diante do amadurecimento do modelo no país. Porém, os números ainda são considerados altos. A avaliação é que os governos ainda sofrem com a dificuldade de priorizar e elaborar bons editais, além do cenário econômico adverso, avaliam especialistas.

O total de cancelamentos em 2021 foi inflado por uma enxurrada de licitações de terminais rodoviários no Rio Grande do Sul. Os ativos foram ofertados isoladamente, e não em bloco – um modelo que se revelou fracassado. Se excluídos esses projetos, o número de projetos extintos no ano cai de 125 para 53, abaixo do registrado em 2020 e em 2019, quando 93 e 61 licitações foram canceladas, respectivamente.

Para Frederico Ribeiro, sócio da Radar PPP, há um avanço na estruturação dos editais. “Existe um amadurecimento do mercado, que tem conseguido assimilar melhores práticas. Hoje, há uma série de projetos de referência, isso ajuda a não errar”, afirma. Ainda assim, ele avalia que a taxa de mortalidade é elevada.

Na média mensal de 2021, para cada 4 licitações em curso, 1 era cancelada, suspensa ou adiada. Se excluídos os projetos de terminais no Rio Grande do Sul, a proporção cai para 1 projeto fracassado para cada 5 em curso.

A alta mortalidade de concessões não é novidade e sempre esteve muito associada a disputas judiciais e intervenções de órgãos de controle, como Ministério Público e tribunais de contas. No ano passado, porém, o principal motivo de fracasso foi a falta de interesse privado nos ativos, que levaram a licitações desertas.

O cenário de alta de juros tem prejudicado a atratividade de concessões, avalia Luis Eduardo Serra Netto, sócio do Duarte Garcia Advogados. “Muitos investidores estão migrando para a renda fixa, e o custo do financiamento está mais caro. Dá para ver esse impacto em todos os projetos. A atratividade dos leilões se torna mais difícil, e muitos acabam ficando na geladeira ou morrem.”

Para Sandro Cabral, professor de Estratégia e Gestão Pública do Insper, tanto o setor público quanto o privado aprenderam muito nos últimos anos e aprimoraram a estruturação de editais. Porém, ele avalia que a atual crise econômica e cenário de instabilidade derrubam o interesse de investidores. “É preciso um ambiente institucional que inspire confiança, isso precisa andar junto com o desenvolvimento de competências”, diz ele.

Além dos terminais rodoviários no Rio Grande de Sul, há outros exemplos de licitações desertas, que não receberam propostas. Um dos maiores casos é o leilão de do sistema de bilhetagem eletrônica no transporte público do Rio de Janeiro, que foi alvo de diversos questionamentos, conseguiu ir adiante, porém, terminou sem ofertas. Outro caso identificado pela Radar PPP foi a concessão do Mercado Público de Blumenau (SC), cujo leilão também não teve interessados.

Um dos principais problemas da mortalidade de concessões é o desperdício de esforços, públicos e privados, com um projeto que não vai para frente, apontam os analistas. Para Sandro Cabral, é importante que governos sejam mais seletivos em suas iniciativas.

Luiz Felipe Graziano, sócio do Giamundo Neto Advogados, avalia que o ideal é formar núcleos específicos, nos moldes do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), do governo federal – um formato que tem sido replicado em entes subnacionais e, segundo ele, dado resultados.

“Essa estrutura ajuda a dar continuidade ao portfólio mesmo com trocas de gestão e a filtrar quais projetos são os mais aderentes ao planejamento. O risco da mortalidade é movimentar toda uma máquina para iniciativas que depois se mostram pouco pertinentes. É importante otimizar recursos, definir critérios claros para selecionar os projetos.”

No âmbito municipal, a dificuldade técnica ainda é o grande entrave, avalia Ribeiro, da Radar PPP. “É quase um clichê, mas a capacitação do setor público continua um dos maiores gargalos. É preciso investir nisso. A gestão não necessariamente precisa elaborar o estudo, porque há ferramentas como o PMI [Procedimento de Manifestação de Interesse] para isso, mas é preciso desenvolver a capacidade para ao menos avaliar o projeto.”

Na visão de Rosane Menezes, sócia do Madrona Advogados, essa dificuldade melhorou muito nos últimos três anos, nos quais instituições públicas como Caixa e BNDES passaram a dar mais suporte à estruturação de projetos de municípios e Estados, o que se refletiu em uma melhor qualidade dos editais. “Outro gargalo é a questão das garantias dos projetos, o que também tem avançado. Tenho uma visão positiva e acredito que esse mercado deverá seguir avançando”, afirma ela.

Matéria originalmente publicada em 31.01.2022, por Taís Hirata, no Valor Econômico.

O projeto da nova disciplina jurídica de licitações e contratos públicos – Algumas das principais mudanças trazidas pelo PL 1292/95

por Marília de Oliveira Bassi

É provável que nos próximos meses, após o período de pandemia do covid-19 pelo qual o país atravessa, o PL 1292/951, que estabelece normas atinentes às licitações e aos contratos públicos, entre outras alterações legislativas, revogando a lei Federal 8.666/93, a lei Federal 10.520/02 (“lei do pregão”) e alguns dispositivos da lei Federal 12.462/2011 (“Lei do RDC”), seja inserido na pauta de discussão do Senado Federal, após aprovação pela Câmara dos Deputados.

De início, entre as principais alterações trazidas pelo PL 1292/95, destacam-se (i) a inversão de fases como regra nos procedimentos licitatórios; (ii) o orçamento sigiloso da administração pública; (iii) obrigatoriedade de estabelecimento de programa de compliance para contratações de grande vulto; (iv) criação do Portal Nacional de Contratações Públicas – P.N.C.P; (v) criação da figura do agente de contratação; (vi) atualização dos valores de contratação direta; (vii) alteração dos percentuais de valores dos seguros e (viii) incorporação da modalidade conhecida como diálogo competitivo2.

Já conhecidos em outras modalidades de licitação, a inversão de fases e o orçamento sigiloso não são novidades nos procedimentos licitatórios do país, utilizados principalmente nos pregões e nos Regimes Diferenciados de Contratação (RDC). De acordo com o PL 1292/95, a inversão de fases será instituída como regra, mas há possibilidade de adoção do procedimento comum, tal como previsto hoje pela lei Federal 8.666/93, de acordo com a discricionariedade do administrador público.

De outro lado, o orçamento sigiloso é apresentado como facultativo, ou seja, caberá à administração pública decidir se confere publicidade ao orçamento estimado para determinada contratação, embora o edital tenha a obrigatoriedade de fornecer informações suficientes à elaboração das propostas pelos proponentes. Embora o PL faculte a decisão pela adoção do sigilo do orçamento, defende-se que a administração pública não estará isenta de observar o princípio da motivação de seus atos, justificando expressamente a escolha adotada para determinado certame.

Além disso, na esteira das principais operações e projetos de combate à corrupção no país, o PL 1292/95 contempla a necessidade de existência ou compromisso de implementação de programa de compliance nas empresas/organizações proponentes, adstrita às contratações de grande vulto. Em um cenário atual, após a revelação de inúmeros esquemas de corrupção envolvendo contratos administrativos e a participação de grandes empresas e agentes públicos, ao longo da última década, é bastante oportuna a previsão de implementação de políticas anticorrupção por parte de futuros particulares contratados, vindo ao encontro do objetivo da atual legislação atinente à matéria (lei de improbidade 8.429/92 e lei anticorrupção 12.846/13)

Em seguida, buscando acelerar os procedimentos de contratação e uniformizar as informações dos proponentes em nível nacional, o PL 1292/95 propõe a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas – P.N.C.P, apresentado como portal eletrônico oficial das contratações públicas do país, com representantes de diversos entes federativos, funcionando não somente como arquivo-geral dos documentos contratuais – com o objetivo de ampliar a transparência e a publicidade das contratações –, mas também como a grande central de cadastramento das empresas proponentes.

Outra mudança digna de registro é a substituição das comissões de licitação pelos agentes de contratação, que serão responsáveis pela condução dos procedimentos licitatórios, em conjunto com uma equipe de apoio. O PL 1292/95 prevê, ainda, que a comissão de licitação pode ser utilizada excepcionalmente, para contratação de bens e serviços especiais.

Não obstante, como era de anseio dos gestores, o PL 1292/95, reconhecendo as dificuldades diárias da administração pública, amplia os valores máximos que autorizam a contratação direta, isto é, sem a necessidade de procedimento licitatório prévio. Para contratação de serviços em geral, por exemplo, o teto será de R$50.000,00, enquanto obras de engenharia que custem até R$100.000,00 também poderão ser contratadas diretamente.

Grandes mudanças relacionadas às garantias contratuais também são verificadas e, com o objetivo de proporcionar à administração pública mais segurança e efetividade na execução dos contratos, o PL 1292/95 propõe percentuais securitários que podem alcançar 30% do valor da contratação, em caso de contratações de grande vulto, compreendidas como maiores de R$200.000.000,00 (duzentos milhões de reais). O ponto crítico, nesta mudança, é que o custo da garantia contratual poderá impactar diretamente nas propostas comerciais a serem apresentadas pelos licitantes, de modo que a maior segurança conferida à Administração contratante significará, talvez e em contrapartida, propostas menos vantajosas sob o aspecto econômico.

Já o art. 100, do PL 1292/95, propõe a previsão de cláusula contratual conhecida como step-in, abrindo possibilidade de a própria seguradora assumir a execução do contrato administrativo, caso o contratado esteja impossibilitado ou seja incapaz de concluir e entregar os serviços e obras.

Ainda, excluídas as modalidades convite e tomada de preços, o PL 1292/95 propõe a criação da modalidade “diálogo competitivo”, através da qual, durante a realização do certame, os proponentes compartilham de sua expertise com relação ao objeto contratado e, após abertura de prazo pela Administração Pública, apresentam soluções inovadoras para execução do contrato.

Por fim, mas não menos importante, buscando conferir qualidade aos projetos apresentados e eficiência na execução do contrato, o PL 1292/95 propõe a abertura dos procedimentos de manifestação de interesse (PMI) para o regime geral das licitações, conferindo à administração pública a possibilidade de utilizar projetos e estudos elaborados por particulares e que sejam de seu interesse para contratação de obras e/ou serviços.

Desta forma, considerando o cenário positivo trazido nas alterações propostas pelo PL 1292/95, bem como os objetivos de desburocratizar os procedimentos e conferir celeridade, eficiência e transparência à execução dos contratos, aguarda-se, agora, a apreciação do texto pelo Senado Federal.

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1 Disponível aqui. Acesso em 28/3/2020.

2 NOHARA, Irene Patrícia. Oito principais mudanças com a nova lei de licitação e contratos. Acesso em 28/03/2020.

 

Artigo originalmente publicado no periódico Migalhas, em 07.04.2020.

Quem não é parte pode acessar processo em trâmite no Tribunal de Contas?

GIUSEPPE GIAMUNDO NETO – Especialista em direito público (infraestrutura, controle e regulação). Mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do Giamundo Neto Advogados.

*Para citar este artigo: GIAMUNDO NETO, Giuseppe. Quem não é parte pode acessar processo no Tribunal de Contas? Portal Jota. 17/09/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/quem-nao-e-parte-pode-acessar-processo-em-tramite-no-tribunal-de-contas-15102019. Acesso em: dd/mm/aaaa.

A Constituição Federal adotou o princípio da máxima publicidade estatal, tratando-o como direito fundamental do cidadão. Assegura-se a todos, à luz do artigo 5º, XXXIII, o “direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei”. E a autoridade ou agente que não viabilizar tal acesso pode ser responsabilizada. Tal cominação excepciona apenas as informações “cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

De pronto, é possível notar a amplitude que o Texto Constitucional conferiu ao direito do cidadão de acesso a informações. Qualquer informação detida por órgão público pode ser acessada, desde que de interesse coletivo ou de interesse particular daquele que a solicita. De outro lado, também a concepção de órgão público é muito vasta, englobando qualquer unidade do Estado que possua um feixe de atribuições1. Resguardam-se, apenas, as informações que sejam sigilosas por questões de segurança estatal e da sociedade.

Outros dispositivos constantes do Texto Constitucional realçam o dever de publicidade que deve guiar a atividade do Estado. São exemplos o artigo 5º, LXXII, que previu o habeas data para assegurar “o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”, o artigo 216, §2º, que dispõe caber à administração pública “a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem”, e o artigo 5º, XXXIV, “b”, que garante a todos, independentemente do pagamento de taxas, “a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal”.

O artigo 5º, da Constituição, especifica em seu inciso LX a publicidade que deve existir nos atos processuais. Segundo tal dispositivo, “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Interpretando-se a contrario sensu, extrai-se que os atos processuais sempre serão públicos. Somente deixarão de ser caso assim a lei o determine.

E a lei, no caso, para fins de restrição da publicidade, deve circunscrever-se à proteção da intimidade ou do interesse social levando em conta os danos que a revelação do ato processual potencialmente pode causar às partes envolvidas, a terceiros ou à coletividade.

Outro aspecto a ser observado é que a Constituição Federal, ao estabelecer a publicidade dos atos processuais sem fazer qualquer distinção, encarece o dever de observância de tal princípio em qualquer forma de processo, seja ele judicial ou administrativo. Nos processos judiciais, em acréscimo, dispõe o artigo 93, IX, da CF, que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes”.

E para os processos administrativos, o dever é reforçado por força do disposto no caput do artigo 37, da CF, que exige obediência ao princípio da publicidade, dentre outros, para toda e qualquer atividade administrativa dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Embora os primeiros destinatários do conhecimento dos atos processuais sejam as partes e seus advogados, aos quais não se pode opor qualquer restrição, até mesmo para viabilizar o exercício da ampla defesa e do contraditório2, a possibilidade de acesso aos atos processuais transcende o interesse das partes, para se posicionar como direito de toda a sociedade.

Desse modo, também terceiros, e não apenas as partes do processo administrativo, podem ter acesso aos autos, inclusive mediante consulta em secretaria e extração de cópias, tendo em vista as garantias dispostas no artigo 5º, incisos XXXIII e LX, da Constituição Federal. A restrição à consulta dos atos processuais por terceiros somente terá lugar se o interesse social ou o direito à intimidade daqueles que compõem o processo estiverem em jogo.

A publicidade dos atos processuais, portanto, é a regra. Somente nas hipóteses em que se justificar restrições por conta dos interesses em discussão é que o sigilo deve ser decretado.

Nesse sentido, a Lei n. 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), ao regular o artigo 5º, XXXIII, da Constituição Federal, viabilizou a ampliação do controle social da gestão pública por meio do acesso a informações e documentos produzidos, gerenciados e guardados pelo Estado.

Referida lei previu a possibilidade de restrição parcial da divulgação quando se fizer necessário o resguardo de informações e documentos comprometedores da segurança da sociedade ou do Estado (art. 23), além de não excluir as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça, nem as hipóteses de segredo industrial (art. 22). Em todos os casos de informação sigilosa, contudo, assegura-se o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo.

No que toca aos órgãos de controle externo e interno, o artigo 7º, VII, b, da Lei n. 12.527/2011, garantiu o acesso ao resultado de inspeções, auditorias, prestações e tomadas de contas por eles realizadas, incluindo prestações de contas relativas a exercícios anteriores.

Resta saber, diante de tal dispositivo, bem como do §3º do mencionado artigo 7º (“o direito de acesso aos documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo”) se é possível que terceiro obtenha vista de processo administrativo em trâmite no Tribunal de Contas antes da apreciação de seu mérito.

Há julgados do Tribunal de Contas da União no sentido de que tal faculdade somente é exercível após o resultado do processo de controle externo. Assim, apenas a partir da prolação de ato decisório de mérito nasceria o direito ao acesso à informação3.

De outro lado, em contraste, merece menção o Acórdão 9062/2017-Primeira Câmara4, sob a relatoria do Min. Bruno Dantas, em que se admitiu que o acesso aos autos de processo não constitui prerrogativa exclusiva das partes, “mas uma garantia do cidadão, conforme estabelece a recente Lei 12.527/2011, que regula o acesso a informações previsto nos artigos 5º, inciso XXXIII, e 37, § 3º, inciso II, da CF/1988”. Confira-se:

(…) 21.A supracitada Lei de Acesso à Informação (LAI) orienta-se de acordo com um conjunto de padrões estabelecidos com base nos melhores critérios e práticas internacionais, dentre os quais é possível destacar os seguintes princípios e diretrizes: divulgação máxima, não exigência de motivação, limitação de exceções e transparência ativa.

22.Pertinente registrar que o direito de acesso à informação não se confunde com o direito de petição, este sim restrito às partes, pois não se admite a manifestação processual de terceiros sem interesse jurídico, sendo imprescindível a devida habilitação nos autos.

23.Em seu bojo, a LAI restringiu o acesso apenas às informações sigilosas (em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado) e às informações pessoais (relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem da pessoa natural), além de expressamente não excluir as demais hipóteses legais de sigilo (como, por exemplo, o das denúncias formuladas ao TCU, com base no art. 55 da Lei 8.443/1992) e de segredos de justiça ou industrial.

24.Ou seja, quer me parecer que o filtro que limita a visibilidade do processo é o grau de confidencialidade a ele aplicado, e não a condição de ser parte, sob o risco de que seja indevidamente restringido o acesso a processos do Tribunal, tolhendo o direito fundamental que a LAI pretende salvaguardar. Enfim, vejo não só como possível, mas desejável o acesso pela sociedade a todas as informações produzidas ou sob guarda do poder público.

25.No presente caso, noto que o processo não é classificado como sigiloso. E, mesmo nos casos em que eventualmente haja alguma peça sigilosa dentro de processo não sigiloso, aplica-se o disposto no art. 27, § 2º, da Resolução-TCU 249/2012: Quando se tratar de informação parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo.

26.Assim, considerando as garantias de acesso à informação previstas nos arts. 5º, incisos XXXIII e LX, e 37, § 3º, inciso II, da CF/1988, na Lei 12.527/2011 e na Resolução-TCU 249/2012, julgo que devem ser deferidos os pedidos de cópia formulados.

A posição assumida pelo TCU no julgado acima transcrito nos parece a que melhor se adequa ao que determina a Constituição Federal quanto ao acesso à informação e à publicidade dos atos processuais.

Somente nos casos em que se caracterizar o dever de sigilo é que a limitação deve ocorrer. A interpretação restritiva da Lei de Acesso à Informação que resulta na impossibilidade de se obter vista de processo administrativo no Tribunal de Contas antes de sua conclusão não se coaduna com as diretrizes fixadas no art. 5º, incisos XXXIII e LX, do Texto Constitucional.

Os dispositivos constitucionais mencionados somente permitem restrição à informação ou ato processual quando a sua publicização puder comprometer interesse social ou o direito à intimidade, ou quando o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Qualquer limitação para além dessas hipóteses, ainda que implementada por lei, deve ser tida como inconstitucional.

Observe-se que a LOTCU não faz qualquer restrição à concessão de vista a terceiros de processo administrativo no Tribunal de Contas. Somente o faz ao tratar dos processos originados a partir de denúncias. Confere-se caráter sigiloso a tais denúncias até que haja decisão definitiva por parte da Corte (art. 55). O conteúdo da denúncia, portanto, assim como os atos do processo, somente são passíveis de consulta por terceiros após a conclusão do processo, mediante decisão final.

O objetivo da LOTCU ao impedir o acesso a processo de denúncia antes da apreciação de seu mérito pelo Tribunal de Contas é nobre e louvável. Quer-se evitar a exposição do denunciado, bem como proteger a sua imagem antes da confirmação dos fatos que lhe são imputáveis. Estaria o denunciado – invariavelmente um servidor público –, sujeito, por exemplo, a explorações políticas e midiáticas decorrentes da existência da denúncia, além de potencialmente ter a sua reputação abalada injustamente.

Ainda assim, importa observar que a denúncia nem sempre tratará de situações em que o denunciante imputa a determinado agente público a prática de irregularidades que colocam em risco a sua imagem e reputação, hipóteses em que o sigilo é justificável. É o caso, por exemplo, de denúncia ou representação que envolva atos da Administração praticados no curso de licitação: um licitante ou mesmo um cidadão, entendendo que determinado edital licitatório está eivado de vícios, denuncia tal fato ao Tribunal de Contas para que este tome conhecimento e examine a regularidade do certame.

Nessa hipótese, bastante corriqueira, o acesso à denúncia por terceiros, bem como de eventual manifestação produzida por equipe de auditoria da Corte de Contas antes do julgamento do assunto, em nada compromete direitos e garantias individuais alheias. O procedimento licitatório e os respectivos documentos e informações produzidos em seu curso já eram públicos antes da denúncia, inclusive eventuais impugnações e recursos apresentados por interessados. Não é lógico, portanto, além de contrário ao disposto no art. 5º, incisos XXXIII e LX, da Constituição Federal, proibir a concessão vista de autos que têm por objeto tal matéria.

No mesmo sentido são as auditorias que envolvem a execução de contratos públicos. A fiscalização do Tribunal de Contas examina a legalidade, legitimidade e economicidade de tais contratações. Nada do que se discute, em regra, reveste-se de caráter sigiloso. Para além da Lei de Acesso à Informação, a própria Lei n. 8.666/93, que rege os contratos administrativos, garante a qualquer cidadão o acesso aos quantitativos das obras e preços unitários de determinada obra executada (art. 7º, §8º). Salvo se houver qualquer situação nos autos que possa comprometer direitos individuais alheios ou quando se verificar as hipóteses de sigilo, não há justificativa para negativa de acesso.

Observe-se que as mesmas discussões existentes em um processo no Tribunal de Contas podem ser travadas no Poder Judiciário, sem que se imponha neste âmbito qualquer restrição à publicidade. Supondo-se que o denunciante do vício editalício tenha, em paralelo, também ingressado com ação judicial para afastar as irregularidades verificadas (v.g. ação popular ou mandado de segurança), o respectivo processo em trâmite no Poder Judiciário, contendo os mesmos documentos, matéria e conteúdo do processo em andamento no Tribunal de Contas, será de livre acesso, desde o seu ajuizamento, por qualquer cidadão. De outro lado, o mesmo não ocorre com o processo administrativo, caso prevaleça o entendimento de que a publicização somente se dá por ocasião de seu término, o que não se mostraria justificável.

O Código de Processo Civil/2015, vale registrar, estabelece como regra que “os atos processuais são públicos”, exceto os que tramitam em segredo de justiça.

Dentre estes, destacam-se, pela compatibilidade com os processos administrativos do Tribunal de Contas, aqueles em que o exija o interesse público ou social e os em que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade (art. 189, I e III). Nesses casos, o direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e aos seus procuradores (art. 189, §1º).

O Tribunal de Contas, portanto, mesmo quando estiver tratando de processo de denúncia – hipótese em que há regra específica da LOTCU limitando o acesso do processo até o seu julgamento definitivo (art. 55) –, ou de qualquer outro tipo de processo, deve examinar o caso concreto para verificar se o sigilo se justifica.

Caso não o faça, negando o acesso indistintamente, como se verifica dos julgados e do normativo interno que estendem tal regra a todos os processos em curso no Tribunal – não apenas para as denúncias –, estará ferindo garantia alçada à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal (XXXIII e LX).

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1 Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28ª Ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 650.

2 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018, p. 126.

3 Cf. Acórdão 1219/2013-Plenário, com o seguinte enunciado: “Apenas com a prolação de ato decisório de mérito pelo Tribunal de Contas da União nasce o direito ao acesso à informação, consagrado na Lei de Acesso à Informação. Antes desse ato de mérito, as normas aplicáveis aos referidos processos de controle externo em tramitação no TCU são a sua Lei Orgânica e o seu Regimento Interno.” (Rel. Walton Alencar Rodrigues, j. em 22/05/2013).

4 J. em 26/09/2017.

7ª edição do Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito da Construção – IBDIC

Aconteceu na última semana do mês de agosto a 7ª edição do Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito da Construção – IBDIC. Durante dois dias, mais de 35 palestrantes abordaram nove temas centrais sobre a segurança jurídica no setor de Direito da construção. Giuseppe Giamundo Neto mediou o painel de abrertura do evento com a temática de Segurança Jurídica na Contratação de Obras Públicas. Agradecemos a oportunidade de partilhar ideias com mais de 200 pessoas.

 

Giuseppe Giamundo Neto, Ministro Benjamin Zymler, Floriano Marques Neto

Prof. Floriano Marques Neto, Ministro Benjamin Zymler, Giuseppe Giamundo Neto

A aplicação do Código de Processo Civil (CPC/2015) no Tribunal de Contas da União (TCU)

GIUSEPPE GIAMUNDO NETO – Especialista em direito público (infraestrutura, controle e regulação). Mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do Giamundo Neto Advogados.

*Para citar este artigo: GIAMUNDO NETO, Giuseppe. A aplicação do Código de Processo Civil/2015 no Tribunal de Contas. Portal Jota. 17/09/2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-aplicacao-do-codigo-de-processo-civil-2015-no-tribunal-de-contas-17092019. Acesso em: dd/mm/aaaa.

Com o advento da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil (“Código de Processo Civil/2015”), a lei processual civil transpôs os limites da regência dos processos jurisdicionais, passando a ter o papel expresso de fonte subsidiária e supletiva dos processos administrativos ao estabelecer em seu artigo 15 que, “na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletivas e subsidiariamente”. Incide, portanto, sobre todos os processos administrativos, no que se incluem aqueles em trâmite no Tribunal de Contas.

O objetivo de tal dispositivo foi o de propagar aos processos não jurisdicionais toda a exigência de respeito aos princípios e normas inerentes ao direito processual constitucional, bem como a sua própria disciplina desses preceitos superiores, além de certos institutos técnico-processuais1. A pertinência é total, portanto, com a temática do devido processo legal.

O artigo 15 do Código de Processo Civil/2015, desse modo, confere grande influência da nova legislação processual civil nos processos administrativos a cargo do Tribunal de Contas, especialmente para o aprimoramento das garantias dos cidadãos e interessados nesses processos. A lei processual civil, nesse sentido, deve ser aplicada não apenas quando houver omissão de regras no processo administrativo, mas também para complementar, aprimorar e atualizar aquelas já previstas.

Como resultado, tem-se uma integração voltada ao preenchimento de lacunas de três ordens: (i) normativa, quando ausente norma para subsunção do caso concreto; (ii) ontológica, quando a norma existe, mas está envelhecida e incompatível com a realidade e respectivos valores sociais, políticos e econômicos; e (iii) axiológica, quando a aplicação da lei existente se revelar manifestamente injusta para a solução do caso concreto2.

Em que pese a aplicação subsidiária das disposições do Código de Processo Civil já pudesse ocorrer a critério do Tribunal de Contas da União3, a novidade parece representar avanço na medida em que: (i) tornou obrigatória, na hipótese de omissão das normas regimentais, a aplicação subsidiária e supletiva da lei processual civil, afastando com isso qualquer discricionariedade antes existente, a cargo do órgão, quanto à aplicação do Código de Processo Civil; (ii) incluiu a supletividade, que tem o condão de suprir lacunas e, como já exposto a, conferir novos contornos a regras já existentes do processo administrativo; e (iii) estabeleceu conexão entre o processo civil e o processo administrativo de contas, aproximando-os.

É certo que o empréstimo de institutos e princípios do Código de Processo Civil não deve ser feito de modo automático e sem qualquer critério. A compatibilidade com as regras da lei especial que disciplina o processo administrativo de contas deve ser observada, preservando-se a sua racionalidade. Há, em poucas palavras, que se ter uma integração harmônica4. As regras da lei processual civil devem ser consonantes com o espírito da regulamentação processual administrativa, não sendo possível transpor o Código para as hipóteses em que o silêncio da lei é proposital, deliberado, não ocasional5. De outro lado, na medida em que o novo Código de Processo Civil forneça instrumentos mais efetivos de tutela de direitos, ameaçados ou violados, eles devem ser adotados, a despeito de solução diversa dada pela legislação específica6.

Nessa ordem de ideias, e tendo como parâmetro de avaliação a compatibilidade lógico-formal das normas, parece-nos de inegável importância o exame dos elementos garantidores do devido processo legal no processo administrativo do Tribunal de Contas considerando as repercussões do Código de Processo Civil/2015.

Tem especial relevo a incidência, nos processos administrativos, das normas de direitos fundamentais constantes dos artigos 1º a 12 do Código de Processo Civil/2015, que se voltam a conferir legitimidade democrática ao exercício da jurisdição por meio de limitações impostas a esse exercício, síntese do devido processo legal7. Ei-las a seguir:

– a aplicação da Constituição Federal ao processo (artigo 1º), segundo a qual o processo deve ser ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais constitucionais;

– o direito às partes de obter a solução do processo em prazo razoável, estabelecida no artigo 4º, em que pese tal direito já estivesse cristalizado no artigo 5º, LXXVIII da Carta Magna, com expressa referência aos processos administrativos.

– o dever de boa-fé processual, constante do artigo 5º, cujo comportamento se espera tanto por parte do sujeito do processo administrativo como por parte do próprio órgão controlador, incluindo-se os seus auditores e julgadores;

– o dever de cooperação das partes (art. 6º), de modo a se obter, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva;

– a paridade de tratamento entre as partes (artigo 7º), assegurada quanto ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao julgador zelar pelo efetivo contraditório;

– o dever, por parte do julgador, de observância à proporcionalidade, à razoabilidade, à legalidade, à publicidade e à eficiência (artigo 8º);

– a obrigação do contraditório prévio a qualquer decisão (art. 9º), ressalvados os casos de medidas de urgência;

– a vedação a decisões surpresa, fixada no artigo 10, segundo o qual não pode o juiz decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar;

– a publicidade dos julgamentos e o dever de motivação das decisões, sob pena de nulidade, constante do artigo 11.

– o atendimento preferencial à ordem cronológica dos julgamentos (artigo 12).

Pode-se dizer que parte das normas fundamentais acima elencadas já eram previstas ou aplicadas pelo Tribunal de Contas, seja por força de sua lei orgânica, seja em decorrência de sua jurisprudência. A nova lei processual civil, nesse sentido, tem o mérito de reforçar tais preceitos, disciplinando-os expressamente. Outras normas fundamentais, contudo, aprimoram ou ampliam garantias processuais, representando inequívoco avanço quanto aos direitos e prerrogativas daqueles que estão sujeitos a tais processos administrativos.

Nessa mesma linha, e partindo para os livros seguintes do Código de Processo Civil/2015, devem ser observadas, em especial, as novas incidências no tocante à intervenção de terceiros no processo administrativo (disciplina do amicus curiae, em especial) e à produção de provas.

Tem-se a figura do amicus curiae, prevista no artigo 138 do Código de Processo Civil/2015, pelo qual, “considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia”, poderá o juiz solicitar ou admitir “a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada”.

Também a produção de provas no processo administrativo de contas pode ser repensada a partir da incidência do Código de Processo Civil/2015. A lei que disciplina o processo administrativo no âmbito do Tribunal de Contas é omissa, por exemplo, em relação à possibilidade de interrogatório para oitiva da parte ou de testemunhas. O mesmo ocorre em relação à produção de prova pericial, que não encontra previsão8. Desse modo, cabe a verificação da compatibilidade da realização de tais provas no âmbito do processo administrativo de contas.

O Código de Processo Civil/2015, ademais, além de adotar a teoria estática do ônus da prova, segundo a qual, via de regra, o ônus da prova constitui ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, consagrou também a teoria dinâmica do ônus da prova. Isto quer dizer, a teor do que dispõe o seu artigo 373, §§1º e 2º, que o juiz pode inverter a obrigação tradicional de produção probatória seja por força de lei seja diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo.

Merece reflexão, nesse sentido, a possibilidade de inversão do ônus da prova em determinados processos administrativos de contas9. A título exemplificativo, cite-se o processo que apura denúncia, no qual o ônus da prova tenderia a recair sobre o responsável denunciado. A partir da nova lei processual civil, a depender das circunstâncias, e sempre a critério do relator do caso, o ônus da prova poderia recair sobre o próprio denunciante por impossibilidade ou excessiva dificuldade que o responsável denunciado teria para tanto.

O Código de Processo Civil/2015 é um estatuto cujo espírito se assenta na busca por maior segurança jurídica das decisões. É, além disso, uma lei garantista, que infraconstitucionaliza princípios constitucionais com o objetivo de assegurar a observância dos preceitos integrantes da tutela constitucional do processo, formando um sistema garantístico próprio10. Daí a relevância da verificação de seus reflexos no processo administrativo do Tribunal de Contas frente ao princípio do devido processo legal.

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1 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018. p. 150.

2 É o que descreve Carolina Tupinambá. Em complemento, a autora observa que “a aplicação supletiva e subsidiária determinada pelo art. 15, portanto, importa admitir, em prol da efetividade como fim unitário do direito processual, que a regulamentação do novo CPC colmatará lacunas normativas, ontológicas e axiológicas das demais legislações especiais de índole processual, as quais não se acomodarão com interpretações isoladas ou apegadas a eventual reputação de autonomia de seus respectivos ramos de processo. Doravante, a partir da literalidade do art. 15 do Código, a construção de soluções de aparentes antinomias do ordenamento do direito processual como um todo não se desvendará exclusivamente pelo critério da especialidade”. (TUPINAMBÁ, Carolina. Comentários ao artigo 15 do Novo Código de Processo Civil. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coord.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 50.

3 Confira-se, nesse sentido, o teor da Súmula TCU 103: “Na falta de normas legais regimentais específicas, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de Contas da União, as disposições do Código de Processo Civil”. O Regimento Interno é até mais expresso e retira a prerrogativa do TCU em decidir sobre essa aplicação, quando estabelece em seu artigo 298 que “aplicam-se subsidiariamente no Tribunal as disposições das normas processuais em vigor, no que couber e desde que compatíveis com a Lei Orgânica”.

4 Como bem acentua Egon Bockmann Moreira ao se referir à lei geral do processo administrativo (Lei 9.784/1999, mas cuja ideia aqui se aplica perfeitamente: “o CPC/2015 não pode ser compreendido como lei estranha ou extraordinária ao processo administrativo (inclusive em relação à Lei nº 9.874/1999). Ao contrário: a leitura deve ser integrada, de molde a fazer com que o CPC/2015 seja, sempre que viável, aplicado: tanto nos casos de omissão da lei específica como naqueles em que proveja solução mais adequada ao caso concreto (desde que compatível com o regime jurídico-administrativo). Não se faz necessária a omissão em sentido estrito (a mais absoluta ausência de norma), pois o que está em jogo é a aplicação do princípios da efetividade”. (Op. cit., p. 318).

5 Cf. DUARTE, Zulmar. Teoria geral do processo: comentários ao CPC de 2015: parte geral. GAJARDONI, Fernando da Fonseca et.al, (livro eletrônico). São Paulo: Forense, 2015. p. 130.

6 BUENO, Cassio Scarpinella. O mandado de segurança e o Novo Código de Processo Civil. In: CIANCI, Mirna; DIDIER Jr., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; REDONDO, Bruno Garcia; DANTAS, Bruno; DELFINO, Lúcio; CAMARGO, Luiz Henrique Volpe (coords.). Novo Código de Processo Civil: Impactos na Legislação Extravagante e Interdisciplinar, vários autores, vários coordenadores, São Paulo: Saraiva, 2016, v. I, p. 196.

7 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018, p. 25.

8 Note-se, inclusive, existir jurisprudência do TCU que se apoia justamente nessa ausência de disciplina no Regimento Interno e na Lei Orgânica do TCU para inadmitir a produção de prova pericial, conforme ementa a seguir: “O processo de controle externo não a admite a produção de prova pericial, não cabendo aplicação analógica das disposições referentes à prova do processo civil, pois a Lei 8.443/1992 e o Regimento Interno do TCU dispõem, exaustivamente, acerca dos meios de prova disponíveis aos responsáveis”. (Acórdão 2491/2016 – Primeira Câmara, Relator Walton Alencar Rodrigues).

9 O TCU possui jurisprudência consolidada no sentido de caber ao gestor o ônus de provar a regularidade da aplicação dos recursos públicos. Com relação ao particular, de outro lado, o TCU entendeu recentemente que cabe a ele (TCU) comprovar as alegações de ilegalidade. Veja o respectivo precedente: “O ônus da prova sobre ocorrências ilegais imputadas a terceiros contratados pela Administração Pública cabe ao TCU, o qual deve evidenciar a conduta antijurídica praticada para fins de imputação de débito. A obrigação de demonstrar a boa e regular aplicação de recursos públicos é atribuída ao gestor, e não a terceiros contratados pela Administração Pública”. (Acórdão n. 901/2018 – 2ª Câmara).

10 Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil – volume I (arts. 1º a 69): das normas processuais civis e da função jurisdicional / coordenação de José Roberto Ferreira Gouvêa, Luis Guilherme Aidar Bondioli, João Francisco Naves da Fonseca. – São Paulo: Saraiva, 2018, p. 54.