por Camillo Giamundo

Já é possível afirmar que a pandemia do coronavírus enfrentada pelo Brasil marca um período sem precedentes na história do país, forçando a adoção de medidas emergenciais, por parte dos Poderes Executivos, com vistas a minimizar – ou pelo menos limitar – o impacto que o vírus pode vir a causar, a exemplo do que já ocorreu nos países asiáticos, europeus e, agora, pelos Estados Unidos.

Poucos dias antes do primeiro caso oficial ter sido confirmado no país, foi sancionada a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, posteriormente complementada pelas Medidas Provisórias nºs 926 e 927, de 2020, e regulamentada pelos Decretos 10.282 e 10.288, 2020.

Especial destaque, e tema do presente artigo, diz respeito à dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, com excepcional possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e suspensão do direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público, quando se tratar, comprovadamente, de únicas fornecedoras do bem ou serviço a ser adquirido (artigo 4º, §3º).

Tal tema foi, inclusive, destaque da entrevista coletiva concedida pelo ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, no último dia 3 de abril, que destacou que o governo, no período atual, não tem tido condições de “cumprir todos os ritos”

A dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública já era permitida pela Lei Federal nº 8.666/93 (art. 24, inciso IV), porém, diante do atual cenário nacional e da gravidade do avanço do vírus, principalmente pelo impacto que a economia já está sofrendo e a necessidade de adoção de medidas emergenciais, com aquisição de bens e serviços necessários ao combate da propagação da doença e ao tratamento dos infectados, mostra-se bastante oportuna e acertada a possibilidade de contratação de empresas sancionadas.

Sobre o tema, destacamos os seguintes pontos importantes a serem observados e com as críticas e comentários necessários.

O primeiro ponto diz respeito ao §3º do artigo 4º da lei, que logo na partida condiciona a contratação de empresa sancionada pelo Poder Público em caráter excepcional na hipótese de, comprovadamente, tratar-se de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

Mostra-se, portanto, que a contratação é exceção à regra, devendo o Poder Público preferir a busca pela contratação por dispensa de licitação de empresas que não estejam sob os efeitos de qualquer penalidade administrativa.

O segundo ponto de destaque diz respeito às sanções administrativas a que se refere a lei, que decorrem de previsões de outros diplomas legais e correspondem às duas medidas mais graves de penalidades, por ordem crescente de severidade: (i) a suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração; e (ii)  declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública.

Tais sanções são aplicadas principalmente com base na Lei 8.666 (Lei de Licitações), como também a Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei 10.520/02 (Lei do Pregão), dentre outras normas, incluindo a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que prevê a competência de aplicar penalidades (artigo 46 da Lei 8.443/92) — o que revela que a possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público independe da esfera administrativa ou judicial na qual tenha sido processada, bem como da subsunção legal a que foi submetida, para enquadramento no artigo 4º, §3º da Lei 13.979.

O terceiro ponto diz respeito ao prazo da contratação excepcional, por dispensa de licitação.

Conforme o artigo 4º-H, os contratos regidos pela Lei 13.979 terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública, que não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial da Saúde (artigo 1º, §3º).

Bastante adequada a previsão dos dispositivos mencionados, pois permite a fruição, por parte do Poder Público, da prestação dos serviços, bens e insumos necessários durante o período de emergência, mantendo as condições de sustento do sistema público de saúde, enquanto perdurar a pandemia.

O quarto ponto de destaque e, aqui, de crítica, é a condição de contratação na hipótese de se tratar, comprovadamente, de empresa única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

A lei parte do pressuposto de que somente seria cabível a excepcionalidade quando verificada a impossibilidade e viabilidade de fornecimento de bens, serviços e insumos por outras empresas que não estejam sob os efeitos de sanções aplicadas pelo poder público.

Não há dúvidas de que qualquer empresa declarada inidônea ou que tenha sido tolhida do direito de participar de licitação e contratar com o poder público deva cumprir a penalidade a que foi submetida, desde que respeitado o devido processo legal administrativo, encerradas todas as oportunidades de defesa e recurso para afastamento da sanção. Até porque, a penalidade tem como uma de suas finalidades o caráter educativo, buscando reduzir e desincentivar as práticas infratoras e sua reincidência.

Contudo, e considerando o atual cenário de pandemia que o País atravessa, sendo frequentemente noticiada a falta de bens e insumos de extrema relevância e importância no enfrentamento da crise do vírus (tais como falta de material hospitalar, escassez de máscaras cirúrgicas, álcool em líquido ou gel, ventiladores mecânicos, entre outros insumos), com grande receio de colapso do sistema público de saúde, parece inoportuna a condição e requisito de contratação de empresa penalizada apenas na hipótese de inexistir outros fornecedores de bens e serviços a serem adquiridos.

Imagine-se a hipótese de um fornecedor de ventilador mecânico (equipamento imprescindível para tratamento de casos mais graves da covid-19) sem qualquer impedimento de licitar e contratar com poder público que eventualmente não consiga atender à demanda necessária. A condição do dispositivo da lei, nesse exemplo, impedirá a contratação de outra empresa fornecedora do mesmo equipamento que esteja sancionada, mas que poderia complementar o número de ventiladores necessários para atendimento dos infectados.

O que se defende é que, desde que a qualidade dos bens, serviços e insumos seja satisfatória e os preços estejam dentro da média praticada pelo mercado, não se mostra razoável condicionar a contratação de empresa inidônea ou suspensa de licitar e contratar com o poder público somente na hipótese de inexistirem concorrentes.

A situação do Brasil é de declarada calamidade pública, totalmente excepcional, de modo que se afigura mais aconselhável, nesse momento, a suspensão de tal condicionante da norma, permitindo-se a contratação de empresas sancionadas em caráter complementar, respeitada a preferência de escolha de empresas que não estejam sob os efeitos de quaisquer penalidades.

O poder público tem condições de fiscalizar e verificar a vantajosidade e economia dos preços a serem praticados pelas empresas sancionadas, bem como fiscalizar a regularidade da prestação dos serviços, de modo que problemas excepcionais clamam por soluções excepcionais, sendo o momento oportuno para deixar de lado o excesso de rigor e formalismo e priorizar o direito à vida e à saúde pública, até que tudo seja normalizado.

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 07.04.2020.