O projeto da nova disciplina jurídica de licitações e contratos públicos – Algumas das principais mudanças trazidas pelo PL 1292/95

O PL 1292/95 propõe a abertura dos procedimentos de manifestação de interesse (PMI) para o regime geral das licitações, conferindo à administração pública a possibilidade de utilizar projetos e estudos elaborados por particulares e que sejam de seu interesse para contratação de obras e/ou serviços.

por Marília de Oliveira Bassi

É provável que nos próximos meses, após o período de pandemia do covid-19 pelo qual o país atravessa, o PL 1292/951, que estabelece normas atinentes às licitações e aos contratos públicos, entre outras alterações legislativas, revogando a lei Federal 8.666/93, a lei Federal 10.520/02 (“lei do pregão”) e alguns dispositivos da lei Federal 12.462/2011 (“Lei do RDC”), seja inserido na pauta de discussão do Senado Federal, após aprovação pela Câmara dos Deputados.

De início, entre as principais alterações trazidas pelo PL 1292/95, destacam-se (i) a inversão de fases como regra nos procedimentos licitatórios; (ii) o orçamento sigiloso da administração pública; (iii) obrigatoriedade de estabelecimento de programa de compliance para contratações de grande vulto; (iv) criação do Portal Nacional de Contratações Públicas – P.N.C.P; (v) criação da figura do agente de contratação; (vi) atualização dos valores de contratação direta; (vii) alteração dos percentuais de valores dos seguros e (viii) incorporação da modalidade conhecida como diálogo competitivo2.

Já conhecidos em outras modalidades de licitação, a inversão de fases e o orçamento sigiloso não são novidades nos procedimentos licitatórios do país, utilizados principalmente nos pregões e nos Regimes Diferenciados de Contratação (RDC). De acordo com o PL 1292/95, a inversão de fases será instituída como regra, mas há possibilidade de adoção do procedimento comum, tal como previsto hoje pela lei Federal 8.666/93, de acordo com a discricionariedade do administrador público.

De outro lado, o orçamento sigiloso é apresentado como facultativo, ou seja, caberá à administração pública decidir se confere publicidade ao orçamento estimado para determinada contratação, embora o edital tenha a obrigatoriedade de fornecer informações suficientes à elaboração das propostas pelos proponentes. Embora o PL faculte a decisão pela adoção do sigilo do orçamento, defende-se que a administração pública não estará isenta de observar o princípio da motivação de seus atos, justificando expressamente a escolha adotada para determinado certame.

Além disso, na esteira das principais operações e projetos de combate à corrupção no país, o PL 1292/95 contempla a necessidade de existência ou compromisso de implementação de programa de compliance nas empresas/organizações proponentes, adstrita às contratações de grande vulto. Em um cenário atual, após a revelação de inúmeros esquemas de corrupção envolvendo contratos administrativos e a participação de grandes empresas e agentes públicos, ao longo da última década, é bastante oportuna a previsão de implementação de políticas anticorrupção por parte de futuros particulares contratados, vindo ao encontro do objetivo da atual legislação atinente à matéria (lei de improbidade 8.429/92 e lei anticorrupção 12.846/13)

Em seguida, buscando acelerar os procedimentos de contratação e uniformizar as informações dos proponentes em nível nacional, o PL 1292/95 propõe a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas – P.N.C.P, apresentado como portal eletrônico oficial das contratações públicas do país, com representantes de diversos entes federativos, funcionando não somente como arquivo-geral dos documentos contratuais – com o objetivo de ampliar a transparência e a publicidade das contratações –, mas também como a grande central de cadastramento das empresas proponentes.

Outra mudança digna de registro é a substituição das comissões de licitação pelos agentes de contratação, que serão responsáveis pela condução dos procedimentos licitatórios, em conjunto com uma equipe de apoio. O PL 1292/95 prevê, ainda, que a comissão de licitação pode ser utilizada excepcionalmente, para contratação de bens e serviços especiais.

Não obstante, como era de anseio dos gestores, o PL 1292/95, reconhecendo as dificuldades diárias da administração pública, amplia os valores máximos que autorizam a contratação direta, isto é, sem a necessidade de procedimento licitatório prévio. Para contratação de serviços em geral, por exemplo, o teto será de R$50.000,00, enquanto obras de engenharia que custem até R$100.000,00 também poderão ser contratadas diretamente.

Grandes mudanças relacionadas às garantias contratuais também são verificadas e, com o objetivo de proporcionar à administração pública mais segurança e efetividade na execução dos contratos, o PL 1292/95 propõe percentuais securitários que podem alcançar 30% do valor da contratação, em caso de contratações de grande vulto, compreendidas como maiores de R$200.000.000,00 (duzentos milhões de reais). O ponto crítico, nesta mudança, é que o custo da garantia contratual poderá impactar diretamente nas propostas comerciais a serem apresentadas pelos licitantes, de modo que a maior segurança conferida à Administração contratante significará, talvez e em contrapartida, propostas menos vantajosas sob o aspecto econômico.

Já o art. 100, do PL 1292/95, propõe a previsão de cláusula contratual conhecida como step-in, abrindo possibilidade de a própria seguradora assumir a execução do contrato administrativo, caso o contratado esteja impossibilitado ou seja incapaz de concluir e entregar os serviços e obras.

Ainda, excluídas as modalidades convite e tomada de preços, o PL 1292/95 propõe a criação da modalidade “diálogo competitivo”, através da qual, durante a realização do certame, os proponentes compartilham de sua expertise com relação ao objeto contratado e, após abertura de prazo pela Administração Pública, apresentam soluções inovadoras para execução do contrato.

Por fim, mas não menos importante, buscando conferir qualidade aos projetos apresentados e eficiência na execução do contrato, o PL 1292/95 propõe a abertura dos procedimentos de manifestação de interesse (PMI) para o regime geral das licitações, conferindo à administração pública a possibilidade de utilizar projetos e estudos elaborados por particulares e que sejam de seu interesse para contratação de obras e/ou serviços.

Desta forma, considerando o cenário positivo trazido nas alterações propostas pelo PL 1292/95, bem como os objetivos de desburocratizar os procedimentos e conferir celeridade, eficiência e transparência à execução dos contratos, aguarda-se, agora, a apreciação do texto pelo Senado Federal.

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1 Disponível aqui. Acesso em 28/3/2020.

2 NOHARA, Irene Patrícia. Oito principais mudanças com a nova lei de licitação e contratos. Acesso em 28/03/2020.

 

Artigo originalmente publicado no periódico Migalhas, em 07.04.2020.

É tempo de coronavírus e de abuso da requisição administrativa

por Giuseppe Giamundo Neto

A pandemia do coronavírus trouxe à tona o instituto pouco falado da requisição administrativa. Com assento constitucional (art. 5º, XXV), a requisição administrativa é o direito de o Poder Público usar de propriedade particular em caso de iminente perigo público. Como contrapartida, assegura-se ao proprietário do bem indenização ulterior, caso haja dano.

Na esteira da Lei Federal 13.979/2020 que, ao instituir as medidas da União para o enfrentamento da saúde pública contra o coronavírus, estabeleceu a possibilidade de as autoridades adotarem a requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas (art. 3º, VII), inúmeros decretos estaduais e municipais têm sido editados para respaldar a utilização de tal prerrogativa por seus respectivos governantes.

Parece inexistir dúvida de que o país está diante de iminente perigo público, o que, em teoria, seria suficiente para satisfazer o requisito constitucional indispensável para a intervenção estatal na propriedade particular em benefício de finalidades coletivas. Ocorre que, levando-se em conta os prejuízos imediatos causados àqueles que têm os seus bens, serviços ou propriedade requisitados, o Poder Público somente pode se valer de tal prerrogativa em última hipótese, isto é, após analisar as alternativas possíveis e verificar inexistir opção menos gravosa.

Observe-se que a mesma Lei 13.979/2020 tornou dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. A desnecessidade de licitação é temporária, aplicando-se enquanto perdurar a situação de emergência. E sequer é necessária a elaboração de estudos preliminares, bastando a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico também simplificado (art. 4º-E).

Portanto, é lógica a conclusão de que o gestor público somente tem a prerrogativa de lançar mão da intervenção na propriedade privada se demonstrar a inviabilidade de realizar a contratação direta, com dispensa de licitação, daquela pessoa natural ou jurídica da qual os bens ou serviços se pretende expropriar.

Infelizmente, contudo, não é o que tem sido visto. Cite-se como bom exemplo a requisição, pela União, de ventiladores de UTI já comprados pelo Município de Recife. Foi necessária uma ordem judicial da Presidência do TRF-5, prolatada no último domingo (22), para que a empresa contratada pela Prefeitura não atendesse à requisição da União e entregasse os respiradores ao Município de Recife. Ainda em Pernambuco, no último dia 19, o Governo do Estado entrou em uma loja de produtos hospitalares na cidade de Recife para recolher máscaras descartáveis a fim de abastecer a rede estadual de saúde.

O previsível pretexto do caráter emergencial e, por consequência, da impossibilidade de se aguardar a realização dos procedimentos prévios à dispensa de licitação raramente se justificarão quando se tem em vista que a Lei 13.979/2020 realmente simplificou o conteúdo do respectivo termo de referência ou projeto básico antecedente à contratação direta. Basta um passar de olhos nos requisitos descritos no art. 4º-E para que isto seja confirmado. Não é exagero retórico dizer que o trabalho e o tempo necessários para proceder à requisição administrativa e à dispensa licitatória são relativamente idênticos.

É abusivo, portanto, além de inadequado e arbitrário, o ato do gestor público que se aproveita do estado de calamidade pública existente para requisitar bens e serviços – especialmente os relacionados à área de saúde –, postergando a contraprestação devida ao requisitado para data futura e incerta, quando poderia muito bem realizar a contratação direta da mesma pessoa natural ou jurídica. Tal conduta, nessas circunstâncias, deve ser combatida pelas vias adequadas, sendo papel do Poder Judiciário coibir os excessos que temos assistido.

Empresas estrangeiras poderão participar diretamente de licitações, via SICAF, a partir de maio de 2020

Empresas estrangeiras que não funcionem no país, a partir de 11/05/2020, poderão participar de processos licitatórios no âmbito do Sicaf (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores).

por Natasha Maria Soares Viana

Foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU), em 10/02/2020 a Instrução Normativa n° 10 (‘IN n° 10/2020’) da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia. A normativa tem por objetivo facilitar a participação de empresas estrangeiras em processos licitatórios federais de forma direta, sem a necessidade de uma representante nacional.

Antes da edição dessa norma, as empresas estrangeiras que não funcionassem no país não podiam se cadastrar diretamente no SICAF (a exceção das licitações processadas com recursos do BID ou do BIRD). Com a publicação da normativa, a partir de 11 de maio de 2020, as empresas poderão participar do processo competitivo e somente depois – em sendo a licitante vencedora – no momento da contratação, é que será necessário cumprir os requisitos para celebração do contrato administrativo.

A IN n° 10/2020 tem o condão de possibilitar a entrada de empresas estrangeiras em mais de 99% dos processos de compras do governo federal (dados do Ministério da Economia[1]). Além dos procedimentos para aquisição e contratação de bens, serviços e obras de engenharia comuns (licitados, em regra, por pregão), a normativa também facilitará a participação de empresas internacionais na licitação de obras de infraestrutura.

A normativa não se aplica a todas as modalidades licitatórias, mas somente a aquelas realizadas em meio eletrônico, como: o pregão eletrônico, o Regime Diferenciado de Contratação (‘RDC’) eletrônico e a dispensa eletrônica, conforme art. 20-A da normativa. Ademais, cabe frisar que a permissão deve estar expressa no instrumento convocatório (art. 21).

Destaca-se que a instrução normativa, assim como o recente Decreto n° 10.024/2019 (que regulamenta o pregão e a dispensa eletrônicos), é mais uma medida do governo federal com o objetivo declarado de simplificar a entrada de empresas de outros países no Brasil, estimulando a competição e a busca por menores preços nas contratações públicas.

Nesse sentido, insta salientar as importantes contribuições trazidas pelo Decreto n° 10.024 de 20/09/2019; dentre elas, destaca-se a possibilidade de as licitantes estrangeiras poderem apresentar a documentação para cadastramento somente em tradução livre, exigindo-se a tradução juramentada de seus documentos somente no caso de se sagrarem vencedoras da licitação.

Percebe-se, portanto, a preocupação do governo federal em implementar medidas capazes de abrir o mercado às empresas estrangeiras, a fim de incentivar a competição no país. Diante disso, a tendência é que, apesar das especificidades da legislação e do mercado brasileiro, haja um incremento da participação de empresas estrangeiras e uma maior desburocratização das licitações públicas.

[1] Link de acesso à notícia: <http://www.economia.gov.br/noticias/2019/09/ministerio-da-economia-debate-as-novas-regras-para-compras-publicas-por-pregao-eletronico>. Acessado em 03/03/2020.

 

 

7ª edição do Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito da Construção – IBDIC

Aconteceu na última semana do mês de agosto a 7ª edição do Congresso Internacional do Instituto Brasileiro de Direito da Construção – IBDIC. Durante dois dias, mais de 35 palestrantes abordaram nove temas centrais sobre a segurança jurídica no setor de Direito da construção. Giuseppe Giamundo Neto mediou o painel de abrertura do evento com a temática de Segurança Jurídica na Contratação de Obras Públicas. Agradecemos a oportunidade de partilhar ideias com mais de 200 pessoas.

 

Giuseppe Giamundo Neto, Ministro Benjamin Zymler, Floriano Marques Neto

Prof. Floriano Marques Neto, Ministro Benjamin Zymler, Giuseppe Giamundo Neto

STJ aprova três novas súmulas de Direito Público

O Superior Tribunal de Justiça aprovou, em sessão ordinária de 12.06.2019, três novos enunciados de súmula de Direito Público. São elas:

 

Súmula nº 633: A lei 9.784/99, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria.

Súmula nº 634: Ao particular aplica-se o mesmo regime prescricional previsto na Lei de Improbidade Administrativa para o agente público.

Súmula nº 635: Os prazos prescricionais previstos no art. 142 da lei 8.112/90 iniciam-se na data em que a autoridade competente para a abertura do procedimento administrativo toma conhecimento do fato, interrompem-se com o primeiro ato de instauração válido – sindicância de caráter punitivo ou processo disciplinar – e voltam a fluir por inteiro, após decorridos 140 dias desde a interrupção.

 

 

Participação de agente público em doação eleitoral não contabilizada (“caixa dois”) nem sempre será tipificada como ato de improbidade administrativa

por Camillo Giamundo

A configuração do ato de improbidade administrativa exige mais do que a mera condição de agente público, sendo imprescindível a caracterização do desvio do dever do sujeito ativo, enquanto no exercício de sua função pública, utilizando-se dela para a prática de ilícito.

 

Embora não esteja explicitamente redigida no Código Eleitoral (lei 4.737, de 15 de julho de 1965), a doação de recursos não contabilizados a campanhas eleitorais é considerada conduta infratora do artigo 350, que tipifica como crime o ato de “omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais”.

A subsunção dessa conduta ao tipo penal sempre foi tema de amplo debate jurídico, tendo como marco expressivo o julgamento do “Mensalão” (ação penal 470 – STF), no qual Ministros da Suprema Corte firmaram entendimento de que a doação não declarada, popularmente chamada de “caixa dois”, constitui crime eleitoral, na medida em que é obrigação do donatário e do doador firmar declaração de que, respectivamente, recebeu e doou recursos destinados a campanha de candidato de cargo eletivo.

Desde então, o tema vem sendo cada vez mais frequente nas pautas do Poder Judiciário, principalmente a partir da Operação Lava Jato, na qual acordos de colaboração premiada e de leniência revelaram a prática de doação não declarada de recursos financeiros a campanhas eleitorais de diversos candidatos – eleitos ou não.

Em decorrência disso, os órgãos de fiscalização e, em especial, o Ministério Público vêm promovendo uma série de medidas buscando investigar e condenar os infratores da legislação eleitoral, na amplitude de esferas que circundam a conduta ilícita – penal, cível e administrativa –. Uma dessas medidas é, notadamente, a ação de improbidade administrativa, regida pela lei federal 8.429, de 2 de junho de 1992, na qual o Parquet, verificando indícios ou provas de doação não contabilizada a determinado candidato eleito, promove a demanda em face do então agente público – e eventuais interlocutores que em nome deste tenham contribuído para a doação não contabilizada – e dos agentes privados, doadores dos recursos.

Todavia, é importante destacar e relembrar que a prática da conduta tipificada no Código Eleitoral, por parte de agente público – ou candidato a agente público –, nem sempre caracterizará, automática e necessariamente, ato de improbidade administrativa.

Para compreensão do tema, é imprescindível analisar o conceito de improbidade administrativa trazido pela lei federal 8.429/92 e a subsunção da conduta de agente público ou candidato a cargo eletivo em receber, solicitar ou participar de doação de recursos a campanhas eleitorais não contabilizados à Lei de Improbidade Administrativa.

Nesse sentido, e logo nos primeiros artigos, o diploma legal define atos de improbidade como aqueles “(…) praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual” (art. 1º),  cujas disposições também “(…) são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” (art. 3º).

Na sequência, a lei federal 8.429/92 elenca, nos artigos 9º, 10 e 11, os atos que caracterizam e constituem improbidade administrativa. Da leitura sistemática da Lei de Improbidade, é possível extrair que um ato ilícito somente será caracterizado como improbidade administrativa se (1) praticado, de forma dolosa, por um agente público ou terceiro, (2) contra a Administração, em todas as suas esferas, órgãos, empresas, entes e entidades, e que (3) importem em enriquecimento ilícito, em razão do cargo por ele exercido (art. 9º), e/ou (4) causem lesão ao erário (art. 10), e/ou (4) atentem contra os princípios da Administração Pública (art. 11).

WALDO FAZZIO JR explica que “o delineamento da improbidade administrativa denota a inobservância de um dever, o de exercer função pública com objetivos públicos. Os fins do exercício de qualquer posição administrativa apontam para o dever de concretizar os direitos republicanos que respaldam o serviço público” e que “as condutas estigmatizadas pelo desvio dos deveres formais de uma função pública para a obtenção de benefícios privados pecuniários ou de prestígio formam a massa mais expressiva dos atos de improbidade administrativa” (FAZZIO JÚNIOR, 2016).

Das lições supra, portanto, pode-se inserir como um dos requisitos necessários à caracterização de ato ímprobo a condição de desvio do dever do agente público, enquanto no exercício de sua função.

Conclui-se, assim, que qualquer ilícito, seja ele civil ou administrativo, praticado por agente público que não esteja no exercício de sua função pública não poderá ser caracterizado como ato de improbidade administrativa, já que se faz necessário o elemento do desvio de seu dever funcional.

Feita essa breve introdução do conceito e dos requisitos para a caracterização de ato de improbidade administrativa trazidos pelo diploma legal, cabe analisar a definição e as características da doação não contabilizada e não declarada (“caixa dois”), em campanhas eleitorais.

Nesse sentido, e como dito anteriormente, considera-se “caixa dois” as doações realizadas por pessoa física ou jurídica1 a um candidato (pessoa física) a cargo eletivo, as quais não foram oficialmente contabilizadas e declaradas à Justiça Eleitoral.

Cabe ressalvar, neste ponto, que “caixa dois” eleitoral, em que pese ser considerado crime, não é, necessariamente, sinônimo de corrupção, também ilícito penal2. Isso porque, enquanto o caixa dois é um ato tipificado no artigo 350 do Código Eleitoral como a omissão, em documento público, de declaração prestada à Justiça Eleitoral, relativa ao recebimento, origem e utilização de valores na campanha de determinado candidato a cargo eletivo, o ato de corrupção passiva é aquele praticado por agente público, que solicita ou recebe vantagem indevida em razão de sua função pública, nos termos do artigo 317 do Código Penal.

Outro ponto que diferencia os ilícitos penais é o sujeito ativo. Enquanto o “caixa dois” pode ser praticado por qualquer pessoa (crime comum) como, por exemplo, aquele que se candidata a um cargo eletivo e que, portanto, não é considerado agente público ou político, a corrupção passiva exige, necessariamente, a prática do ato por agente público, em razão de sua função pública (crime próprio).

Ainda no campo da evidente distinção entre os aludidos ilícitos, destaca-se a motivação do agente público. No caso em que a doação recebida por um particular candidato a cargo eletivo, cujo montante não foi contabilizado e que se destina exclusivamente ao custeio de campanha eleitoral, há a configuração do “caixa dois” eleitoral. Situação contrária ocorre na prática do crime de corrupção passiva, em que o agente público recebe, solicita ou aceita promessa indevida, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, em razão de sua função, por já ter prestado ou ao menos com a intenção de prestar, omitir ou retardar ato de ofício, infringindo dever funcional.

Assim, tem-se as seguintes premissas, importantes para a análise do tema proposto:

(i) Caracteriza-se ato de improbidade administrativa aquele (1) praticado, de forma dolosa, por agente público, no exercício de sua função pública, (2) contra a Administração, em todas as suas esferas, órgãos, empresas, entes e entidades, e que (3) importe enriquecimento ilícito, em razão do cargo por ele exercido (art. 9º), e/ou (4) cause lesão ao erário (art. 10), e/ou (4) atente contra os princípios da Administração Pública (art. 11);

(ii) Caracteriza-se como doação não contabilizada, ou “caixa dois”, o ato de um candidato a cargo eletivo – e, portanto, ainda não considerado agente público ou político – receber recursos financeiros para campanha eleitoral e não os declarar em sua prestação de contas à Justiça Eleitoral, conduta esta tipificada no artigo 350 do Código Eleitoral;

(iii) “Caixa dois” e “corrupção” são ilícitos penais que, embora em algumas situações práticas possam estar simultaneamente presentes, tratam-se de tipos distintos, sendo importante destacar que também se diferencia o sujeito ativo de cada um; enquanto o “caixa dois” não exige a prática por agente público, o ato de corrupção necessariamente deverá ser realizado por indivíduo investido em função pública e com motivação a ela correlata.

Do raciocínio que se construiu até aqui, a conclusão que se chega é a de que “caixa dois” nem sempre se enquadrará, de forma automática, nos requisitos caracterizadores do ato de improbidade administrativa.

Isso porque, o sujeito ativo deve, necessariamente, ser um agente público, de modo que o donatário de recurso não contabilizado e declarado à Justiça Eleitoral não necessariamente será agente público, pelo menos enquanto no exercício de campanha eleitoral.

Veja-se que, nesse sentido, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define que “[d]ois são os requisitos para a caracterização do agente público: um, de ordem objetiva, isto é, a natureza estatal da atividade desempenhada; outro, de ordem subjetiva: a investidura nela” (BANDEIRA DE MELLO, 2010. P. 244-245).

Ou seja, para caracterizar um indivíduo como agente público, deverá ser verificado se (i) sua atividade tem natureza estatal, bem como se (ii) aquele indivíduo está investido nesta função.

Sendo um candidato a cargo eletivo um sujeito que almeja um mandato e função pública, conclui-se, portanto, que a ele não se pode atribuir a característica de agente público, visto que ainda não exerce atividade de natureza estatal e, muito menos, está investido na função ou cargo a que se propõe ser eleito.

É nesse sentido a literalidade do artigo 9º da Lei de Improbidade, que confirma esse raciocínio, na medida em que dispõe que “constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° (…)”.

Exige-se, portanto, não só que o sujeito ativo seja agente público, como também que esteja no exercício de seu cargo, mandato, função, emprego ou atividade pública.

Um candidato a cargo eletivo, portanto, ainda não está no exercício de seu mandato, de modo que não se aplicam as disposições da lei federal 8.429/92.

Por fim, é importante destacar que a conclusão a que se chega no presente artigo não se aplica aos casos nos quais o agente público, utilizando-se de sua função pública e de seu cargo ou mandato, obtenha, para si ou para terceiros, doação de recursos a campanhas eleitorais não contabilizados. Quando se destaca a imprescindibilidade de o agente público estar efetivamente no exercício de sua função e dela se utilizando para cometer o ilícito penal eleitoral, por meio de seu cargo ou mandato, se quer dizer que é necessária a caracterização do uso da máquina pública à qual pertence e possui competência, poder de decisão, legitimidade ou influência para prometer e conceder comprovada vantagem indevida ao particular doador que, em contrapartida da doação não contabilizada, proporcione enriquecimento ilícito indevido do agente público e/ou cause lesão ao erário e patrimônio público e atente contra os princípios da Administração.

O tema ainda é bastante debatido, porém a conclusão a que se chega é de que a doação não declarada de recursos (“caixa dois”) em campanha eleitoral nem sempre será enquadrada como ato de improbidade administrativa, sendo imprescindível a análise da conduta dos agentes envolvidos e do uso efetivo de suas funções públicas para constatar se a obtenção dos recursos se deu em troca de vantagem indevida a particular, e que implique em enriquecimento ilícito do agente público, bem como em lesão ao erário ou ao patrimônio público e/ou infração aos princípios da Administração Pública.

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1 A partir do ano de 2015, após o julgamento da ADI nº 4650, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a doação de recursos de pessoas jurídicas para financiamento eleitoral.

2 Nesse sentido, vide Ação Penal nº 1.003, proposta pelo Ministério Público em face de Gleisi Hoffmann, em trâmite perante o STF, em que os Ministros Relator e Revisor desclassificaram a conduta de crime de corrupção passiva, mas a condenaram por “caixa dois”. Os votos foram vencidos, e a Ré foi absolvida, no entanto, o exemplo é importante para corroborar que um ilícito não é sinônimo de outro, nem está intimamente a ele ligado.

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BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 27ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010.

FAZZIO JUNIOR, Waldo. Improbidade administrativa: doutrina, legislação e jurisprudência. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.

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Artigo originalmente publicado no site Migalhas, em 17.06.2019.