Efeitos da covid-19 nos contratos administrativos: a possibilidade de pagamento antecipado pela administração pública

por Gabriela Soeltl

O ponto de partida para a breve análise que será feita neste artigo surgiu do questionamento sobre a atual compreensão do princípio da legalidade, previsto no art. 37, caput, da Constituição Federal.  Na concepção clássica[1], uma das frentes do referido princípio busca travar possíveis arbitrariedades cometidas pela administração pública em face do administrado, de tal modo que entoamos, não raras as vezes, o (já quase) ditado popular “Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”.

E não é de hoje que existem questionamentos acerca da aplicação pura do referido princípio ao caso concreto, os quais são normalmente vinculados à necessária flexibilização da administração pública para lidar com eventos, cujos impactos, simplesmente não foram previstos pelo legislador, exatamente como ocorre com a atual pandemia de covid-19.

Longe da discussão sobre a natureza jurídica dessa situação para fins de alocação de riscos[2], por exemplo, é fato que as consequências geradas pela paralisação quase total do mercado brasileiro geram um cenário de incertezas para o particular que irá contratar com o poder público, ao ponto de se condicionar a prestação de serviços ou fornecimento de bens ao seu pagamento antecipado, com receio do inadimplemento involuntário da obrigação financeira assumida pelo contratante público.

Contudo, a resposta que se tem do outro lado invoca o princípio da legalidade (em contraposição ao atendimento do interesse público) para obstar o prévio recebimento de valores por parte do particular contratado, especialmente em virtude das regras gerais que recaem sobre essa condicionante, contidas nas Leis Federais nºs 8.666/1993 e 4.320/1964, como se verá em seguida.

Por isso é que, em tempos de crise, ganha relevância o debate sobre a transformação do princípio da legalidade, como bem pontuado por Egon Bockmann Moreira em recente artigo publicado no portal jurídico Direito do Estado[3], no qual se destaca o seguinte trecho:

(…) O prédio da legalidade está sendo atingido, portanto. Ao menos na sua compreensão tradicional. O que nos coloca diante de novos desafios, ainda mais agudos do que apenas escrever artigos, teses e dissertações sobre princípio da juridicidade, capacidade normativa de conjuntura e consensualidade administrativa. Tais temas chegaram ao mundo real. Deixaram de ser Law in the books e se tornaram Law in action. Está na hora, portanto, de levarmos a sério a ressignificação do princípio da legalidade e compreender que a administração pública deve atuar “conforme a lei e o Direito” (Lei 9.784/1999, art. 2º, par. ún., inc. I), sempre levando em conta “os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo” (LINDB, art. 22). (…)

Certos da necessária compreensão da legalidade a partir de um ponto de vista mais atento à prática da gestão pública e a realidade contratual, é que os comentários a seguir buscam demonstrar a possibilidade do pagamento antecipado para consecução de serviços e fornecimento de bens, também a partir da novel Medida Provisória nº 961, quando observados alguns aspectos dessa relação jurídica.

Regras gerais contidas nas Leis Federais nºs 8.666/1993 e 4.320/1964 para o pagamento antecipado

Na Lei Federal nº 8.666/1993, o desenho a respeito do pagamento antecipado tem seu início na previsão do Art. 40, inc. XIV, “d” e de seu §3º, que trata das indicações obrigatórias para os editais de licitação que serão promovidos pela administração pública, sendo importante destacar que “considera-se como adimplemento da obrigação contratual a prestação do serviço, a realização da obra, a entrega do bem ou de parcela destes, bem como qualquer outro evento contratual a cuja ocorrência esteja vinculada a emissão de documento de cobrança”.

Na sequência, os Arts. 55, inc. III, e 65, inc. II, “c”, tratam dos aspectos contratuais que envolvem o pagamento devido ao contratado particular, conformando a disciplina da Lei Federal nº 8.666/1993 sobre o assunto em epígrafe e, como regra geral, vedando a antecipação de pagamento, com relação ao cronograma fixado, sem que haja a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço.

Da análise desses dispositivos, verifica-se que o pagamento está intimamente relacionado ao cumprimento da obrigação pelo particular, sendo possível a sua antecipação, nos termos específicos do art. 40 supracitado, quando previsto, previamente, no instrumento convocatório, na forma de descontos financeiros, e após a execução do objeto contratado.

De outro lado, a Lei Federal nº 4.320/1964, que dispõe sobre as normas gerais de direito financeiro para a elaboração e o controle dos orçamentos e balanços da União, estados, munícipios e do Distrito Federal, determina, em seus arts. 62 e 63, §2º, inc. III, que o pagamento só será feito após regular liquidação, ou seja, quando da verificação do direito adquirido pelo credor.

A princípio, portanto, e como regra geral, não caberia a antecipação de pagamentos em contratos administrativos, com a ressalva realizada para a disposição do art. 40 da Lei Federal nº 8.666/1993.

Nada obstante, ressalta-se que parte da doutrina defende a possibilidade de antecipação de pagamento pela administração pública, mesmo antes da execução do objeto contratado, muito em razão de que não deve existir nenhum distanciamento entre os contratos que são celebrados pelo particular em sua esfera privada, “sob pena de afugentarem os eventuais interessados em contratar com a administração”[4].

No âmbito do Tribunal de Contas da União, tem-se uma evolução na jurisprudência a respeito da possibilidade ou não do pagamento antecipado, considerando as regras gerais previstas no ordenamento jurídico.

Em 2013, por exemplo, a 1ª Câmara do TCU, nos autos do TC 015.127/2009-0, consignou que “a jurisprudência do TCU também é firme no sentido de admitir o pagamento antecipado apenas em condições excepcionais, contratualmente previstas, sendo necessárias ainda garantias que assegurem o pleno cumprimento do objeto”.

Em 2017, nos autos do TC 006.637/2012-4, o Plenário do TCU discorreu sobre os três pressupostos que são determinantes para a ocorrência do pagamento antecipado, ressaltando, ainda, que esse deve ocorrer de maneira excepcional, quais sejam: (i) demonstração prévia pela administração pública (direta ou indireta) da real necessidade do adiantamento a fim de assegurar a devida execução do serviço; (ii) a existência de cláusulas no instrumento convocatório prevendo esse pagamento antecipado; e (iii) a prestação pela contratada de garantias no valor dos pagamentos antecipados. Esse é o entendimento atual que vigora no âmbito da Corte de Contas.

De forma parecida, a Advocacia Geral da União também reconheceu a possibilidade de antecipação de pagamentos em 13/12/2011, por meio da Orientação Normativa nº 37, desde que presentes os seguintes requisitos: (i) represente condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço, ou propicie sensível economia de recursos; (ii) existência de previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta; e (iii) adoção de indispensáveis garantias, como as do art. 56 da Lei Federal nº 8.666/93, ou cautelas, como por exemplo, a previsão de devolução do valor antecipado caso não executado o objeto, a comprovação de execução de parte ou etapa do objeto e a emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras.

Dessa forma, considerando a disciplina jurídica que foi dada aos dispositivos legais aqui citados, conclui-se pela possibilidade do pagamento antecipado em contratos administrativos, quando em situações excepcionais, devidamente motivadas pelo administrador e precedidas das cautelas definidas pelo TCU e pela AGU, acima citadas.

O reconhecimento da possibilidade de antecipação de pagamentos em situações como as geradas pela covid-19

Questão pendente é a possibilidade de antecipação de pagamentos enquanto vigorar a situação excepcional provocada pela covid-19. Desnecessário pontuar que a pandemia dos últimos meses é um fato novo com implicações igualmente novas para a administração pública e para os administrados, de modo que, até o último dia 6 de maio, não havia uma cartilha a ser seguida. Por isso, é que recomendava-se o diálogo entre administração e administrado, sempre atentos às particularidades da relação contratual, à excepcionalidade da situação, e ao que melhor iria atender o interesse público.

A incerteza com relação ao pagamento antecipado em tempos de covid-19 alterou-se com a edição da Medida Provisória nº 961, que autoriza a antecipação de pagamentos nas licitações e nos contratos administrativos no âmbito da administração pública de todos os entes federativos, além de ampliar o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, desde que (i) represente condição indispensável para obter o bem ou assegurar a prestação do serviço ou (ii) propicie significativa economia de recursos (art. 1º, inc. II).

Nesse caso, a administração deverá (i) prever a antecipação de pagamento em edital ou em instrumento formal de adjudicação direta e (ii) exigir a devolução integral do valor antecipado na hipótese de inexecução do objeto (art. 1º, §1º). Ainda, conformando o posicionamento até então vigente do TCU e da AGU para situações excepcionais, a norma dispõe que a administração pública poderá prever cautelas aptas a reduzir o risco de inadimplemento contratual, tais como, prestação de garantias nas modalidades de que trata o art. 56 da Lei Federal nº 8.666/1993, comprovação de execução de parte ou de etapa inicial do objeto pelo contratado, para a antecipação do valor remanescente, emissão de título de crédito pelo contratado, entre outras (art. 1º, §2º).

Deve-se destacar que há disposição que veda o pagamento antecipado na hipótese de prestação de serviços com dedicação exclusiva de mão de obra (art. 1º, §3º), bem como a aplicação temporal da MP nº 961, que diz respeito aos atos realizados até 31/12/2020, nos termos do Decreto Legislativo nº 06/2020, independentemente do seu prazo ou do prazo de suas prorrogações.

Na prática, e além da MP nº 961, deve-se levar conforto para a decisão do administrador também a partir dos preceitos trazidos pelo Decreto Federal nº 9.830/2019[5], responsável por regulamentar alterações importantes da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, precipuamente sob a ótica do efetivo exercício da gestão pública, de modo se pautar nas consequências práticas, na contextualização dos fatos, nas dificuldades reais do agente público e nas exigências políticas a seu cargo, conferindo, legitimamente, uma maior fluidez de princípios que são caros ao direito administrativo, como é o da legalidade.

A medida vem em boa hora, quando é necessário oferecer novas ferramentas ao gestor público para lidar com o estado de calamidade gerado pela covid-19 e com a escassez de produtos e serviços ocasionados pelo período de quarentena, sendo, inclusive, um problema de ordem internacional. Pondera-se os princípios incidentes ao caso concreto – representados, principalmente, pela legalidade versus interesse público – superando dogmas existentes em prol da eficiência da contratação, desde que preenchidos alguns requisitos determinados pela norma e que são legítimos diante da coisa pública.

Com efeito, tem-se que as consequências geradas pela pandemia de covid-19 irão contribuir com a transformação de vários mandamentos até então incontestáveis no ramo do direito administrativo e que precisavam de uma nova roupagem para restabelecer a eficiência na atuação pública. Espera-se que medidas como as propostas pela MP 961 gerem frutos à relação jurídica sempre existente entre a administração e administrado, de modo que princípios extremamente valorados sejam superados em benefício da melhoria da qualidade decisória do gestor público.

*Gabriela Soeltl, advogada associada da área de Direito Público do escritório Giamundo Neto Advogados

NOTAS

[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 30. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

[2] A discussão sobre a natureza jurídica dos impactos gerados pelo COVID-19 foi objeto do PARECER nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AG, exarado pela Advocacia-Geral da União (AGU) em resposta à consulta formulada pela Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura. Nessa oportunidade, concluiu-se que a pandemia configura um caso tradicional de “força maior” e “caso fortuito”, estando alocado à Administração Pública e, portanto, suscetível de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo.

[3] MOREIRA, Egon Bockmann. Princípio da legalidade em tempos de crise: destroçado ou ressignificado?. Direito do Estado, n. 447, 2020. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/egon-bockmann-moreira/principio-da-legalidade-emtempos-de-crise-destrocado-ou-ressignificado.Acesso em 29/04/2020.

[4] GASPARINI, Diogenes. Pagamento antecipado nos contratos administrativos. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo: Volume 2, 1992, p. 10/14.

[5] Arts. 2º, 3º e 8º, sem prejuízo de outras disposições aplicáveis.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 08.05.2020.

Controle externo dos gastos públicos em tempos de covid-19 e urgência de políticas contra a pandemia

por Marília de Oliveira Bassi

Quase dois meses após a confirmação do primeiro caso de coronavírus no País, é possível afirmar que o Brasil enfrenta hoje uma das maiores calamidades de sua história moderna, com profundos reflexos sociais e econômicos.

A pandemia de covid-19 exige demasiado esforço conjunto da sociedade e dos entes federativos, notadamente com a adoção de medidas de restrição de circulação de pessoas e distanciamento social, de modo a evitar a disseminação do vírus e, por consequência, o colapso do sistema público de saúde brasileiro, que demanda a implementação de políticas públicas de combate à pandemia, que devem ser executadas de maneira quase que imediata, sob pena de comprometimento de sua efetividade, considerando a rápida disseminação da doença e seu alto nível de contágio.

O desafio dos gestores públicos neste momento de calamidade é enorme: construção inédita e em tempo recorde de hospitais de campanha, fornecimento de insumos hospitalares e equipamentos de proteção, realização de testes, contratação de profissionais, bem como a prestação de todos os demais serviços públicos adjacentes necessários ao combate da covid-19.

A excepcionalidade da situação, conjugada com o alto nível de contágio e de disseminação do vírus, entretanto, não permite – ou, em último caso, dificulta – que os gestores públicos promovam regulares certames licitatórios, em atendimento aos procedimentos estabelecidos na Lei Federal n.º 8.666/93 e demais legislações atinentes à matéria.

Na maioria dos casos, o próprio decreto do Poder Executivo, que institui o estado de calamidade pública, autoriza a contratação das obras e serviços necessários ao combate da covid-19 de forma emergencial, em consonância com a hipótese de dispensa de licitação expressamente prevista pelo art. 24, inciso IV da Lei Federal n.º 8.666/93.

Com relação aos gastos públicos em tempos de pandemia, a grande questão que se coloca é qual será a forma de fiscalização e de análise das contratações e, mais ainda, qual será a postura adotada pelos órgãos externos de controle, diante da excepcionalidade da situação de calamidade pública e, mais uma vez, da urgência de implementação de políticas públicas de saúde e prestação de serviços pelo Poder Público.

Como exemplo, o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou na Sessão Plenária de 08/04/2020 o “Plano de Acompanhamento das Ações de Combate à Covid-19”, que prevê a forma de atuação da Corte de Contas durante a pandemia do coronavírus, estimulando o controle preventivo dos atos administrativos que impliquem em dispêndio de recursos públicos.

Referido plano de atuação é concentrado no acompanhamento das ações adotadas pelos entes federativos e na análise dos impactos causados pela pandemia, de forma que ainda não houve, por parte do Tribunal de Contas da União, definição de referencial de preços ou qualquer outro parâmetro ou critério de análise da conformidade das contratações emergenciais formalizadas durante o período.

Diante desse cenário, é de se esperar que os órgãos de controle externo, sensíveis à excepcional situação de pandemia mundial e calamidade pública, analisem as circunstâncias nas quais celebradas as contratações emergenciais e as dificuldades impostas aos gestores públicos, nos termos das disposições do §1º do art. 22 do Decreto Lei n.º 4.657/42 (“Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB”).

Referido dispositivo foi introduzido pela Lei n.º 13.655/18, conhecida como a Nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que acrescentou 11 novos dispositivos ao Decreto-Lei n.º 4.465/42, com o objetivo de aperfeiçoar a criação e a aplicação das normas de direito público, consolidando a busca estatal por mais segurança jurídica e eficiência na execução de decisões na prestação de serviços, em prestígio ao controle externo eficiente da gestão.

Verifica-se, assim, que a legislação atual impõe ao julgador a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade quando da motivação de suas decisões, considerando os obstáculos e as dificuldades do administrador e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo do direito dos administrados, evitando-se, assim, a determinação de cumprimento de decisões inexequíveis na administração pública, ou que prejudiquem a própria prestação dos serviços públicos.

E é exatamente neste contexto que devem ser exercidos o controle e a fiscalização dos gastos públicos pós-pandemia: considerando as circunstâncias excepcionais nas quais celebradas as contratações, adequando-se, por exemplo, os referenciais de preços de contratação, avaliando a dificuldade e os custos com transporte e fabricação dos insumos necessários à execução dos contratos emergenciais firmados pelo poder público.

De acordo com as disposições da LINDB, portanto, não seria razoável que, após ultrapassada a pandemia, os órgãos de controle externo invalidassem indistintamente contratos emergenciais e aplicassem sanções aos contratantes de acordo com os parâmetros utilizados em situações de normalidade, deixando de prezar pela análise concreta da conjuntura nacional, principalmente com relação aos custos envolvidos à gestão pública, tempo e eficácia das políticas públicas.

É tempo de ação conjunta e direcionada, de implementação de políticas de saúde promovidas pelos entes federativos, de flexibilização das dinâmicas de contratação e execução de ajustes administrativos, bem como de aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade na análise dos gastos públicos, buscando, principalmente, garantir a efetividade das medidas de combate à covid-19.

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 26.04.2020.

As alterações promovidas na etapa de lances do pregão eletrônico – comentários sobre o decreto federal 10.024/19

por Gabriela Soeltl

É tempo de aguardar os efeitos práticos do decreto federal 10.024/19, na ânsia de que esses colaborem com o fortalecimento de uma administração pública voltada à efetividade do objetivo principal de toda e qualquer licitação.

Em vigor há pouco menos de seis meses, o decreto federal 10.024/19 instituiu nova disciplina com relação às licitações promovidas por meio de pregão eletrônico, tendo, a partir das alterações formuladas, positivado a inclusão dos serviços comuns de engenharia, antes expressamente excluídos pelo revogado art. 6º do decreto federal 5.450/20051, regulamentado a possibilidade de dispensa eletrônica, e tornado a modalidade como de uso obrigatório pelos órgãos da administração pública federal direta, autarquias, fundações e fundos especiais.

O curto período de vigência ainda não nos permite maiores conclusões sobre os efeitos práticos do novel normativo no âmbito das contratações públicas, contudo, não há como negar que as inovações trazidas eram esperadas e foram bem recebidas pelos profissionais que atuam na área, especialmente pelo fato de que a modalidade é vista como um meio mais célere às compras e serviços necessitados pela administração de um modo geral, conferindo maior eficiência.

E dentre tantas alterações promovidas, este breve estudo busca se debruçar sobre o novo funcionamento da etapa de lances, previsto a partir do art. 30 do decreto federal 10.024/19, e o qual exigirá uma certa adequação por parte dos pregoeiros com relação aos limites de sua atuação e um melhor planejamento estratégico por parte dos proponentes.

No modelo estabelecido pelo revogado decreto federal 5.450/05, após a classificação das propostas pelo pregoeiro, abria-se a fase competitiva, de modo que caberia aos proponentes o lançamento de suas propostas por meio do sistema eletrônico. Nessa sistemática, (i) os demais proponentes seriam imediatamente informados do recebimento de lances, inclusive, com relação ao valor consignado, (ii) poderiam oferecer lances sucessivos, (iii) observando que o licitante somente poderia oferecer lance inferior ao último por ele ofertado, e (iv) os licitantes seriam informados, em tempo real, do valor do menor lance registrado, sendo vedada a identificação do licitante.

O encerramento dessa etapa se daria por decisão do pregoeiro, de modo que o sistema eletrônico encaminharia um aviso de fechamento iminente dos lances, “após o que transcorrerá período de tempo de até trinta minutos, aleatoriamente determinado, findo o qual será automaticamente encerrada a recepção de lances”, isto é, o denominado tempo randômico.

Sendo um tempo aleatório de até trinta minutos, desconhecido dos licitantes e do próprio pregoeiro e que, dado o caráter vazio da disposição, poderia ser estipulado em um ou dois minutos2, venceria o proponente que enviasse o menor lance antes do fechamento do tempo randômico. Por óbvio que a disciplina disposta pelo decreto federal 5.450/05 privilegiava à perspicácia de um proponente e não a eficiência, em seu mais amplo significado, da contratação, além de obstar a competitividade que é inerente ao objetivo dessa previsão, evidenciando as fragilidades do modelo até então vigente.

Nesse sentido, pretendendo criar um modelo mais atento às finalidades da contratação pública na modalidade do pregão eletrônico, é que o decreto federal 10.024/19 segregou os modos de disputa, estabelecendo, em seu art. 31, os modos aberto e o aberto e fechado, a serem escolhidos de maneira discricionária pela administração pública, in verbis:

Art. 31.  Serão adotados para o envio de lances no pregão eletrônico os seguintes modos de disputa:

I – aberto – os licitantes apresentarão lances públicos e sucessivos, com prorrogações, conforme o critério de julgamento adotado no edital; ou

II – aberto e fechado – os licitantes apresentarão lances públicos e sucessivos, com lance final e fechado, conforme o critério de julgamento adotado no edital.

Parágrafo único.  No modo de disputa aberto, o edital preverá intervalo mínimo de diferença de valores ou de percentuais entre os lances, que incidirá tanto em relação aos lances intermediários quanto em relação ao lance que cobrir a melhor oferta.

No modo de disputa aberto, o tempo para envio dos lances foi fixado em dez minutos e, após isso, a etapa será prorrogada automaticamente pelo sistema quando houve lance ofertado nos últimos dois minutos do período de duração da sessão pública (art. 32). Por sua vez, a prorrogação automática também terá um prazo fixado de dois minutos e ocorrerá sucessivamente sempre que houver lances enviados nesse período de prorrogação, inclusive quando se tratar de lances intermediários (art. 32, §1º). Caso não existam novos lances na primeira etapa, bem como na respectiva prorrogação, a sessão pública será automaticamente encerrada (art. 32, §2º).

De maneira mais didática, a partir do oitavo minuto da primeira etapa de dez minutos, todos os licitantes sabem que possuem mais dois minutos para cobrir determinado lance. Então, se há o lançamento de um novo preço nesse ínterim, o sistema prorroga a disputa por mais dois minutos e assim sucessivamente.

Tem-se, assim, um período conhecido e suficiente para que os proponentes possam planejar e estimar as estratégias de preço voltadas à contratação. Se omissos, isto é, não lançarem os seus preços, entende-se que não possuem interesse ou quando muito, foram negligentes, sendo que nessa última hipótese, a responsabilidade não mais recairá sobre a sistemática estabelecida pelo normativo de regência. Há, aqui, a efetiva disputa de preços, permitindo que a administração possa buscar a proposta mais vantajosa.

Ainda sobre o modo de disputa aberto, chama a atenção o disposto no art. 32, §3º,  pois caso não ocorra a prorrogação automática pelo sistema, o pregoeiro poderá, assessorado pela equipe de apoio, e de maneira justificada, admitir o reinício da etapa de lances, em prol da consecução do melhor preço.

Talvez esse seja um dos pontos mais sensíveis dessa nova sistemática, e para coibir práticas que pretendam burlar eventual negligência de determinado licitante, apenas como exemplo, é essencial que a medida seja acompanhada da devida justificativa pelo pregoeiro, com a indicação dos motivos pelos quais entende-se pelo reinício da etapa e de que forma essa dialoga com os critérios objetivos do art. 7º, parágrafo único do decreto federal 10.024/19.

Necessário pontuar, também, agora ao considerar a posição do pregoeiro na condução do certame, que a disposição do art. 32, §3º, em vista da sistemática trazida e de prévio conhecimento dos proponentes, deve ser adotada em situações excepcionais, sob pena de colocar em risco à higidez intentada pelo novo modelo.

Já no modo de disputa aberto e fechado, a etapa de envio de lances terá um prazo de quinze minutos (art. 33). Encerrado esse prazo, o sistema encaminhará o aviso de fechamento iminente dos lances e, transcorrido o período de até dez minutos, aleatoriamente determinado, a recepção de lances será automaticamente encerrada (art. 33, §1º).

Encerrado esse último prazo, o sistema abrirá a oportunidade para que o autor da oferta de valor mais baixo e os autores das ofertas com valores até dez por cento superiores àquela, possam ofertar um lance final e fechado em até cinco minutos, que será sigiloso até o encerramento do prazo (art. 33, §2º).  Na ausência de, no mínimo, três ofertas nas condições imediatamente anteriores, os autores das melhores propostas subsequentes, na ordem de classificação, também poderão oferecer um lance final e fechado em até cinco minutos, que será sigiloso até o termo desse prazo (art. 33, §3º).

Na ausência de lance final e fechado classificado nos termos dos §2º e §3º, será reiniciada a etapa fechada para que os demais licitantes, na ordem de classificação, possam ofertar um lance final e fechado em até cinco minutos, que será sigiloso até o encerramento desse prazo, observado, após essa etapa, a ordem crescente de vantajosidade (art. 33, §4º).

Esse modo de disputa também replicou a previsão do art. 32, §3º, comentado anteriormente e o qual suscita um maior cuidado por parte dos proponentes e do pregoeiro responsável por conduzir o procedimento.

De todo modo, o que se extrai dessas previsões, é que novo modelo proposto pelo decreto federal 5.450/05 rompe, definitivamente, com os óbices relacionados à seleção da proposta mais vantajosa à administração pública contidos no diploma anterior, tornando a disputa muito mais séria, seja do ponto de vista dos proponentes, seja do ponto de vista do pregoeiro e de sua equipe de apoio, personagens que certamente terão que amadurecer a forma de participação e condução dos processos licitatórios.

Há uma inequívoca melhora na performance da administração pública, especialmente com relação à disposição de critérios de disputa que certamente pretendem a vantajosidade das propostas e não os conchavos passíveis de serem criados em um modelo inadequado que vigorava no diploma anterior e que, em nada, atingia as finalidades da lei federal 8.666/93.

É tempo de aguardar os efeitos práticos do decreto federal 10.024/19, na ânsia de que esses colaborem com o fortalecimento de uma Administração Pública voltada à efetividade do objetivo principal de toda e qualquer licitação.

_________

1 Decreto federal 5.450/2005

Art. 6º A licitação na modalidade de pregão, na forma eletrônica, não se aplica às contratações de obras de engenharia, bem como às locações imobiliárias e alienações em geral.

2 Essa inconsistência acabou determinando o controle do Tribunal de Contas da União em um caso específico, no qual o tempo randômico foi estipulado em um tempo inferior a cinco minutos. Nessa oportunidade, o TCU informou ao órgão controlado que “a concessão de tempo reduzido para a fase de lances nos pregões eletrônicos, bem como a execução do comando para encerramento da fase de lances enquanto as reduções de preços dos lances sejam significativas, (…) prejudica a obtenção da proposta mais vantajosa, caracterizando descumprimento do art. 3º da lei 8.666/93”. (Acórdão 1.188/2011 – Plenário, Rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti, julgado em 11/05/2011).

 

Artigo originalmente publicado no periódico Migalhas, em 17.04.2020.

O dever de decisão da administração pública na pandemia

por Daniel Stein

Um dos princípios norteadores do processo administrativo é o da oficialidade. Por força desse princípio, uma vez iniciado o processo, a autoridade competente para decidir tem o dever de conduzi-lo até a tomada de decisão, independentemente de o seu início ter ocorrido por provocação do particular ou por ofício pela própria administração.

Não por menos, a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, estipula, em seus artigos 48 e 49, o dever da emissão explícita de decisão e o prazo para emitir decisão (concluída a instrução), respectivamente. O reconhecimento do estado de calamidade pública por si só não implica imediata suspensão dos processos administrativos, pois há um interesse público na decisão pertinente, independente do próprio interessado.

Neste sentido, vale mencionar o § 5º do art. 3º do Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, o qual determina que os órgãos públicos manterão mecanismos que viabilizem a tomada de decisões. Vale dizer que esse dispositivo está inserido no contexto de um regulamento federal sobre o rol de serviços e atividades essenciais.

Ainda que cada órgão público possa dispor sobre as limitações de funcionamento para adaptação à situação extraordinária que vivemos, isso não significa e não implica na omissão sobre o dever de decisão.

Assim, caso não seja possível a realização de determinadas atividades de instrução ou mesmo de atividades que deveriam subsidiar a tomada de decisão, torna-se um dever da administração adotar medidas que preservem o direito do administrado a fim de que a não tomada de decisão não o prejudique ou agrave seu estado no âmbito da situação que ensejou o processo administrativo em questão, mediante a concessão de medidas cautelares ou mesmo de antecipação de determinados efeitos, naquilo que for comprovadamente incontroverso.

Artigo originalmente publicado no Jornal do Comércio (RS), em 14/04/2020.

A possibilidade de reequilíbrio econômico financeiro de contratos públicos em decorrência da variação cambial agravada pela crise do novo coronavírus

por Camillo Giamundo

Contratos administrativos baseados em moedas estrangeiras podem ser revistos para fins de reequilíbrio econômico-financeiro em situação de excepcional variação cambial

Não é incomum, principalmente em contratos firmados com o Poder Público envolvendo empreendimentos de infraestrutura, insumos e bens importados, que o orçamento e a proposta comercial do particular contratado estejam fixados nos valores do dólar ou do euro.

Na maioria das vezes, em tais situações, a flutuação da variação cambial dentro dos patamares normais de volatilidade deve ser absorvida pelo contratado, restando a ele arcar com os riscos do negócio e os custos decorrentes de sua atividade empresarial.

Todavia, em situações de imprevisibilidade ou de previsibilidade cujas consequências sejam incalculáveis, a onerosidade excessiva que a alta da cotação da moeda estrangeira cause a um particular contratado permite, conforme precedentes jurisprudenciais, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com o Poder Público.

É exatamente a situação que se verifica, no Brasil, no atual cenário econômico decorrente da pandemia do COVID-19.

Segundo o Banco Central, o Brasil encerrou o ano de 2019 com a cotação de compra do dólar no valor de R$ 4,03 e o euro no valor de R$ 4,52 (31/12/2019), época em que o coronavírus sequer era uma preocupação mundial, sendo apenas uma noticiada epidemia local da China. De dezembro de 2019 ao final de janeiro de 2020, a cotação de ambas as moedas deu um salto de aproximadamente vinte centavos, encerrando o dólar, no primeiro mês do ano, a R$ 4,26 e o euro a R$ 4,72 (31/01/2020).

As moedas seguiram forte tendência de alta no mês de fevereiro, com significativa elevação a partir da confirmação do primeiro caso de coronavírus no país, noticiado em 26/02[1], com dólar a R$ 4,47 e euro a R$ 4,91. Especialistas já admitiam a hipótese da moeda americana na casa dos R$ 5,00, o que veio a ser confirmado em 17 de março, que encerrou o dia na cotação de R$ 5,04, data em que o país já contabilizava 349 pessoas infectadas pelo novo vírus e as Bolsas europeias despencavam para o menor nível desde 2012, enquanto a pandemia de coronavírus se alastrava pela Europa[2].

O mês de abril não fugiu da tendência dos meses anteriores, e encerrou a primeira semana com o dólar cotado a R$ 5,29 e o euro a R$ 5,72.

Vê-se, portanto, que da última cotação de 2019 das moedas estrangeiras até os primeiros dias de abril, houve alta de aproximadamente 31% para o dólar, e pouco mais de 26% para o euro.

Em termos práticos, em apenas três meses a variação das moedas significou um indubitável impacto nas transações comerciais internacionais e, para o objetivo do presente artigo, relativo desequilíbrio nos contratos públicos que tenham sido firmados na base orçamentária estrangeira, na ordem de aproximadamente 30%.

Situações como a presente reclamam a aplicação da teoria da imprevisão, que incide na ocorrência de fatos externos ao contrato, imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, que impactam o equilíbrio econômico-financeiro de forma alheia à vontade de ambas as partes contratuais.

Para exemplificar, o Tribunal de Contas da União, em 05/07/2017, por meio do Acórdão 1.431/2017, sob relatoria do Ministro Vital do Rêgo, decidiu sobre a possibilidade do reequilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos em razão de variações cambiais, estabelecendo novos parâmetros e definições, especificamente nos casos de contratos que tenham por objeto principal a prestação de serviços executados no Brasil, com a característica de importação de bem ou serviço. Naquela decisão, o TCU reconheceu que a variação cambial inesperada e significativa pode ser suficiente para ensejar eventual reequilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado, com a limitação de que tal procedimento se dê exclusivamente em relação aos insumos humanos e materiais adquiridos na localidade de prestação dos serviços.

De acordo com o Relator, três são os critérios para considerar a variação cambial um fator apto a ensejar a recomposição de preços em contratos públicos: (1) constituir-se em um fato com consequências incalculáveis, ou seja, cujas consequências não sejam passíveis de previsão pelo gestor médio quando da vinculação contratual; (2) ocasionar um rompimento severo na equação econômico-financeira impondo onerosidade excessiva a uma das partes. Para tanto, a variação cambial deve fugir à flutuação cambial típica do regime de câmbio flutuante; e (3) não basta que o contrato se torne oneroso, a elevação nos custos deve retardar ou impedir a execução do ajustado, como prevê o art. 65, inciso II, alínea “d”, da Lei 8.666/1993.

O Superior Tribunal de Justiça, em caso análogo, também decidiu pela indenização do particular contratado, por conta da desvalorização cambial da moeda brasileira em 1999. No Recurso Especial nº 1.433.434, o Ministro Sérgio Kukina destacou que a mudança “abrupta” na política cambial, naquele caso concreto, caracterizou-se como situação extraordinária, sendo justa a repactuação dos termos ou, visto que o contrato já tinha sido cumprido, a indenização pelas perdas sofridas.

E nem poderia ser diferente. o dever de o Poder Público ressarcir o contratado pelo desequilíbrio da equação econômico-financeira da avença decorre dos preceitos constitucionais, trazidos pelo artigo 37, inciso XXI da Constituição Federal, que assegura ao particular que contrata com a Administração Pública a manutenção “das condições efetivas da proposta”, bem como o artigo 65 da Lei 8.666/1993 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), por sua vez, dispõe sobre a possibilidade de alteração dos contratos administrativos “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da administração para a justa remuneração (…) objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato”.

Ademais, o direito ao reequilíbrio decorre, igualmente, de outro princípio jurídico: o que proíbe o enriquecimento sem causa, expressamente consignado no artigo 884, do Código Civil, visto que a Administração Contratante se beneficiaria dos serviços prestados pelo privado sem, contudo, remunerá-lo adequadamente.

Não há dúvidas de que o atual cenário enfrentado pelo país pode significar, em muitos contratos públicos, a aplicação da teoria da imprevisão, haja vista a alta volatilidade e crescimento da moeda americana e do euro frente ao real, de modo que, a depender do caso concreto, o restabelecimento do equilíbrio econômico financeiro do contrato é verdadeiro dever do Poder Público e direito do particular contratado, cabendo a adoção das medidas jurídicas necessárias para o reconhecimento de tal garantia, caso haja impedimento pela via administrativa e voluntária.

[1] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-saude-confirma-1-caso-de-coronavirus-medidas-de-cuidado-continuam-as-mesmas,70003210635

[2] https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2020/03/17/bolsas-europeias-abrem-em-alta.htm

 

Artigo originalmente publicado no Portal Fator Brasil, em 28.04.2020.

A excepcionalidade da contratação de empresas penalizadas pelo poder público em tempos de pandemia

por Camillo Giamundo

Já é possível afirmar que a pandemia do coronavírus enfrentada pelo Brasil marca um período sem precedentes na história do país, forçando a adoção de medidas emergenciais, por parte dos Poderes Executivos, com vistas a minimizar – ou pelo menos limitar – o impacto que o vírus pode vir a causar, a exemplo do que já ocorreu nos países asiáticos, europeus e, agora, pelos Estados Unidos.

Poucos dias antes do primeiro caso oficial ter sido confirmado no país, foi sancionada a Lei Federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, posteriormente complementada pelas Medidas Provisórias nºs 926 e 927, de 2020, e regulamentada pelos Decretos 10.282 e 10.288, 2020.

Especial destaque, e tema do presente artigo, diz respeito à dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública, com excepcional possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e suspensão do direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público, quando se tratar, comprovadamente, de únicas fornecedoras do bem ou serviço a ser adquirido (artigo 4º, §3º).

Tal tema foi, inclusive, destaque da entrevista coletiva concedida pelo ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Wagner Rosário, no último dia 3 de abril, que destacou que o governo, no período atual, não tem tido condições de “cumprir todos os ritos”

A dispensa de licitação nos casos de emergência ou de calamidade pública já era permitida pela Lei Federal nº 8.666/93 (art. 24, inciso IV), porém, diante do atual cenário nacional e da gravidade do avanço do vírus, principalmente pelo impacto que a economia já está sofrendo e a necessidade de adoção de medidas emergenciais, com aquisição de bens e serviços necessários ao combate da propagação da doença e ao tratamento dos infectados, mostra-se bastante oportuna e acertada a possibilidade de contratação de empresas sancionadas.

Sobre o tema, destacamos os seguintes pontos importantes a serem observados e com as críticas e comentários necessários.

O primeiro ponto diz respeito ao §3º do artigo 4º da lei, que logo na partida condiciona a contratação de empresa sancionada pelo Poder Público em caráter excepcional na hipótese de, comprovadamente, tratar-se de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

Mostra-se, portanto, que a contratação é exceção à regra, devendo o Poder Público preferir a busca pela contratação por dispensa de licitação de empresas que não estejam sob os efeitos de qualquer penalidade administrativa.

O segundo ponto de destaque diz respeito às sanções administrativas a que se refere a lei, que decorrem de previsões de outros diplomas legais e correspondem às duas medidas mais graves de penalidades, por ordem crescente de severidade: (i) a suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração; e (ii)  declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública.

Tais sanções são aplicadas principalmente com base na Lei 8.666 (Lei de Licitações), como também a Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), Lei 10.520/02 (Lei do Pregão), dentre outras normas, incluindo a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que prevê a competência de aplicar penalidades (artigo 46 da Lei 8.443/92) — o que revela que a possibilidade de contratação de empresas sancionadas com declaração de inidoneidade e direito de participar de licitação ou contratar com o Poder Público independe da esfera administrativa ou judicial na qual tenha sido processada, bem como da subsunção legal a que foi submetida, para enquadramento no artigo 4º, §3º da Lei 13.979.

O terceiro ponto diz respeito ao prazo da contratação excepcional, por dispensa de licitação.

Conforme o artigo 4º-H, os contratos regidos pela Lei 13.979 terão prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessivos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de emergência de saúde pública, que não poderá ser superior ao declarado pela Organização Mundial da Saúde (artigo 1º, §3º).

Bastante adequada a previsão dos dispositivos mencionados, pois permite a fruição, por parte do Poder Público, da prestação dos serviços, bens e insumos necessários durante o período de emergência, mantendo as condições de sustento do sistema público de saúde, enquanto perdurar a pandemia.

O quarto ponto de destaque e, aqui, de crítica, é a condição de contratação na hipótese de se tratar, comprovadamente, de empresa única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

A lei parte do pressuposto de que somente seria cabível a excepcionalidade quando verificada a impossibilidade e viabilidade de fornecimento de bens, serviços e insumos por outras empresas que não estejam sob os efeitos de sanções aplicadas pelo poder público.

Não há dúvidas de que qualquer empresa declarada inidônea ou que tenha sido tolhida do direito de participar de licitação e contratar com o poder público deva cumprir a penalidade a que foi submetida, desde que respeitado o devido processo legal administrativo, encerradas todas as oportunidades de defesa e recurso para afastamento da sanção. Até porque, a penalidade tem como uma de suas finalidades o caráter educativo, buscando reduzir e desincentivar as práticas infratoras e sua reincidência.

Contudo, e considerando o atual cenário de pandemia que o País atravessa, sendo frequentemente noticiada a falta de bens e insumos de extrema relevância e importância no enfrentamento da crise do vírus (tais como falta de material hospitalar, escassez de máscaras cirúrgicas, álcool em líquido ou gel, ventiladores mecânicos, entre outros insumos), com grande receio de colapso do sistema público de saúde, parece inoportuna a condição e requisito de contratação de empresa penalizada apenas na hipótese de inexistir outros fornecedores de bens e serviços a serem adquiridos.

Imagine-se a hipótese de um fornecedor de ventilador mecânico (equipamento imprescindível para tratamento de casos mais graves da covid-19) sem qualquer impedimento de licitar e contratar com poder público que eventualmente não consiga atender à demanda necessária. A condição do dispositivo da lei, nesse exemplo, impedirá a contratação de outra empresa fornecedora do mesmo equipamento que esteja sancionada, mas que poderia complementar o número de ventiladores necessários para atendimento dos infectados.

O que se defende é que, desde que a qualidade dos bens, serviços e insumos seja satisfatória e os preços estejam dentro da média praticada pelo mercado, não se mostra razoável condicionar a contratação de empresa inidônea ou suspensa de licitar e contratar com o poder público somente na hipótese de inexistirem concorrentes.

A situação do Brasil é de declarada calamidade pública, totalmente excepcional, de modo que se afigura mais aconselhável, nesse momento, a suspensão de tal condicionante da norma, permitindo-se a contratação de empresas sancionadas em caráter complementar, respeitada a preferência de escolha de empresas que não estejam sob os efeitos de quaisquer penalidades.

O poder público tem condições de fiscalizar e verificar a vantajosidade e economia dos preços a serem praticados pelas empresas sancionadas, bem como fiscalizar a regularidade da prestação dos serviços, de modo que problemas excepcionais clamam por soluções excepcionais, sendo o momento oportuno para deixar de lado o excesso de rigor e formalismo e priorizar o direito à vida e à saúde pública, até que tudo seja normalizado.

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 07.04.2020.