por Philippe Ambrosio Castro e Silva

É sabido que o ordenamento jurídico contempla um mecanismo diferenciado para a execução e pagamento dos débitos da Fazenda Pública. Trata-se do chamado precatório, que, em linhas gerais, nada mais é do que uma ordem de pagamento oriunda do Judiciário aos órgãos ou entes públicos, e que deve guardar observância a princípios do direito financeiro, bem como da impessoalidade e da isonomia entre os credores.

As regras básicas se encontram previstas na Constituição e, ao longo do tempo, têm sido alteradas em razão da incapacidade do Poder Público de honrar com suas obrigações e débitos. A PEC nº 23/2021, também chamada popularmente de PEC dos Precatórios, vem a se somar a tal cenário.

Sua formulação contém clara motivação política, pois visa, a um só tempo, a conferir maior margem no orçamento público para novos investimentos e ampliação do pagamento de auxílios sociais, como também a descumprir a “regra de ouro” do chamado “teto de gastos”.

Em 09/11/2021 a Câmara dos Deputados aprovou o texto final da medida, que agora será examinada pelo Senado Federal.

A única “boa” solução adotada pela Câmara em relação ao projeto original encaminhado pelo Executivo consistiu na rejeição da regra que previa o parcelamento inconstitucional e forçado de precatórios. Em seu lugar, porém, estabeleceu-se uma limitação anual para pagamento de precatórios, mediante o “represamento” da expedição de novos precatórios. Enquanto estiver vigente o chamado “Teto de Gastos” (Novo Regime Fiscal), haverá também um teto para pagamento de precatórios equivalente ao valor despendido no exercício de 2016 por cada ente ou órgão devedor, corrigido em 7,2% entre 2016 e 2017 e pela variação anual do IPCA a partir de 2017. Caso atingido o teto, os demais precatórios só poderão ser expedidos no exercício subsequente.

Essa dinâmica viola de morte o Texto Constitucional, pois submete o Poder Judiciário e as decisões transitadas em julgado a uma espécie de fila de espera indefinida, configurando um flagrante desrespeito à separação dos Poderes da República, à coisa julgada e à segurança jurídica.

A partir desse intrincado e ainda obscuro mecanismo, o projeto cria a possibilidade de celebração de acordos com deságio de 40% para recebimento em parcela única e até o término do exercício seguinte, o que se aplicaria para precatórios ainda pendentes de expedição. Cuida-se de mais uma tentativa de impor dificuldades aos credores para extrair facilidades, isto é, a postergação do pagamento e a redução dos débitos judiciais do Poder Público.

A PEC nº 23/2021 ainda institui uma aparente compensação automática de débitos tributários do credor do precatório, a qual já restou instituída anteriormente e foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em 2015.

Trata-se de uma alteração que atenta contra os princípios da isonomia e da menor onerosidade nas execuções fiscais, pois permite que a Fazenda Pública deixe de utilizar dos meios executivos previstos em lei para satisfazer seus créditos e passe a se valer de uma via compulsória, claramente mais gravosa ao particular, gerando um enorme desequilíbrio de forças.

Outra importante modificação recai na previsão de se facultar ao credor, “conforme estabelecido em lei do ente federativo devedor, com autoaplicabilidade para a União, a oferta de créditos líquidos e certos reconhecidos pelo ente federativo ou por decisão judicial transitada em julgado.”

A PEC nº 23/2021 ainda altera a forma de atualização dos precatórios e de todos os débitos da Fazenda Pública. Deixa-se de utilizar o IPCA-E como índice de correção monetária com o acréscimo de juros moratórios para se aplicar unicamente o acumulado da variação da chamada taxa Selic.

Porém, é sabido que a Selic não necessariamente é capaz de refletir a desvalorização do capital provocada pela inflação nem muito menos e, a um só tempo, é capaz de compensar os efeitos da mora, como é da natureza dos juros.

Tanto é assim que o STF já declarou inconstitucional regra juridicamente similar, por meio da qual se definiu a Taxa Referencial (TR) como índice de correção monetária.

A se registrar que essa circunstância nefasta passaria a ser adotada em relação a todo e qualquer débito em discussão em face da Fazenda Pública, ou seja, mesmo muito antes da constituição do precatório, o débito passaria a ser “corrigido” pela variação da Selic.

Em resumo, muito embora esteja repleta de inconstitucionalidades — as quais já foram em parte reconhecidas pelo STF ao examinar outras emendas sobre precatórios —, são grandes as chances de sua aprovação pelo Senado, o que resultará em mais um enorme número de questionamentos no Judiciário, tendo o condão de politizar os pronunciamentos judiciais e de macular ainda mais a já combalida e quase inexistente segurança jurídica que haveria de ser observada, sobretudo, nas relações com a Administração Pública.

Artigo originalmente publicado no Estadão, em 12.11.2021.