por Giuseppe Giamundo Neto

No Brasil da pandemia da Covid-19, os operadores do Direito podem queixar-se de tudo, menos de tédio, tamanha a quantidade de inovações e atos normativos que pululam diariamente.

A última foi a edição da MP 966, publicada ontem no Diário Oficial da União, dispondo sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.
À primeira vista o seu conteúdo parece uma quase repetição do que já dispõem o artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e seu respectivo regulamento (Decreto nº 9.830/2019).

O artigo 1º da MP, em seu caput, estabelece que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados com as medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19. A redação do dispositivo é praticamente idêntica à do artigo 28 da LINDB, com pequenos complementos.

Contudo, em prestígio ao dito de que o diabo está nos detalhes, parece importante examinar com minúcia tais adaptações de redação. Nesse sentido, observa-se, primeiramente, o emprego do advérbio somente antes da ação de responsabilização, com claro intuito de reforçar a impossibilidade de responsabilização fora das duas hipóteses que indica.

Em seguida, verifica-se a limitação da responsabilização às esferas civil e administrativa em caso de dolo ou erro grosseiro, diferenciando seu texto da LINDB, que permite todo tipo de responsabilização em tais casos.

Tal restrição às espécies de responsabilização, não fosse apenas inconstitucional, por afronta ao art. 37, §4º, da CF, é perigosíssima. Interpretação literal do dispositivo pode conduzir ao afastamento da responsabilização criminal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro. Algo impensável.

Em terceiro lugar, ainda examinando o art. 1º da MP, constata-se a delimitação da aplicação da norma apenas às ações relacionadas ao enfrentamento da pandemia da Covid-19.

E aqui, mais uma observação importante: para além das medidas visando ao atendimento da emergência de saúde pública, o art. 1º, inc. II, inclui as ações relacionadas ao combate “aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia”.

A norma, portanto, parece querer blindar ações políticas que foram ou serão tomadas nos campos econômicos e sociais.

Partindo para o §1º do art. 1º, pelo qual a responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir, nota-se tratar de repetição, ipsis litteris, de dispositivo do Decreto nº 9830/19 (art. 12, §6º).

O mesmo ocorre com o art. 1º, §2º que ao prever que o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente, replica o art. 12, §3º, do decreto regulamentador da LINDB. Também a definição de erro grosseiro constante do art. 2º da MP não é novidade, na medida em que copia o texto do art. 12, §1º, do Decreto.

Por fim, o art. 3º da MP 966, ao descrever o que deve ser considerado para efeito de aferição do erro grosseiro do agente, adicionalmente ao que já prevê a LINDB e seu Decreto, inclui a necessidade de verificação da circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência, bem como o contexto de incerteza em relação às medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia. Nada, portanto, que já não pudesse ser extraído implicitamente das mencionadas normas.

Como se observa, a MP 966, talvez no afã de proteger o bom administrador público, reforça ou repete aquilo que não precisava reforçar ou repetir, apenas causando insegurança jurídica, justamente o que busca combater.

E como se não bastasse, naquilo que a MP 966 inova em relação à LINDB, o faz mal, a exemplo da limitação da responsabilização do agente público aos campos civil e administrativo em caso de dolo ou erro grosseiro, livrando-o de responder criminalmente em tais circunstâncias.

Ao fazê-lo, atenta contra o texto constitucional, potencialmente contaminando disposições já positivadas na LINDB e em seu regulamento que vêm sendo acolhidas pela jurisprudência, incluindo a dos órgãos de controle.

Abra-se aqui parêntese para registrar que boa parte das críticas ao texto da MP 966 se referem à lógica e conteúdo de dispositivos replicados da LINDB cuja vigência já tem mais de dois anos. É curioso e surpreendente notar a quantidade de especialistas e autoridades que se manifestaram sem se atentar a esse fato, tratando como novas questões já bastante discutidas e amadurecidas pela doutrina publicista e jurisprudência. Fecha-se o parêntese.

É certo que a MP 966, acaso não revogada a tempo pela presidência da República diante de sua evidente repercussão negativa, será em breve examinada pelo Supremo Tribunal Federal (já há seis ADIs em curso).

Quando isto ocorrer, espera-se, ao menos, que se mantenha a higidez dos dispositivos replicados da LINDB, tomando-se o cuidado de separar o joio do trigo. Somente assim será possível evitar a desconstrução, por arrastamento, de parcela do longo trabalho que resultou nesta imprescindível norma.

Artigo originalmente publicado no portal JOTA, em 15.05.2020.