por Maria Laura Pereira Lourenço de Oliveira

É de amplo conhecimento que a covid-19, doença infectocontagiosa causada pelo novo coronavírus, tem se propagado rapidamente, infectado mais de meio milhão de pessoas e levado a óbito cerca de 27 mil pessoas no mundo (até o último dia 27/3), razão pela qual foi qualificado como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, a fim de conter a crescente contaminação, o poder público de inúmeros municípios e estados tem determinado o fechamento total dos locais que prestam serviços não essenciais, em especial empreendimentos comerciais (lojas, academias, escolas, shoppings etc.), medida essa cujos efeitos, a médio e longo prazo, têm gerado preocupação até dos empreendedores mais otimistas.

Pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Serviços (CNS) prevê que o comércio perderá cerca de R$ 80 bilhões em faturamento, gerando dois milhões de demissões de funcionários do setor. Como exemplo, uma grande rede varejista informou que, diante do fechamento das suas 175 lojas, prevê receita zero pelo período de três meses.

Uma das alternativas encontradas para enfrentar esse período de falta de receitas é a revisão das condições de determinados contratos, em especial do contrato locatício, de modo a reequilibrá-lo de acordo com a situação econômico-financeira dos contratantes, seja pela minoração ou pela concessão de período de carência dos encargos locatícios, ante a ocorrência de fato superveniente, imprevisível que onera excessivamente o locatário.

Os contratos de locação de imóveis urbanos comerciais, salvo exceções, são regulados pela Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato), a qual prevê um mecanismo de reequilíbrio contratual de ajuste do locativo para a realidade de mercado, após 3 anos de vigência do contrato ou da última alteração do valor do aluguel, mediante ajuizamento de Ação Revisional de Aluguel (art.19), a qual dispensa a demonstração de quaisquer acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

Não obstante, é certo que não há qualquer previsão para reequilibrar o contrato, quando não preenchidos os requisitos objetivos exigidos pela Lei do Inquilinato, o que restringe significativamente a aplicação daquele dispositivo. Assim, ante a lacuna normativa da referida Lei, aplica-se, subsidiariamente, o Código Civil (Lei 10.406/03), em especial as disposições relativas à onerosidade excessiva, enquanto instrumento de efetivação da boa-fé objetiva, função social do contrato, solidariedade e justiça contratual.

Nesse ponto, cumpre destacar que, em que pese no âmbito dos contratos empresariais ser precipitado admitir a rescisão e ou revisão de contratos com base na onerosidade excessiva, ainda que decorrente de situações extraordinárias e imprevisíveis, é certo que a Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) inseriu previsão expressa no Código Civil (art. 421-A, inciso III) a respeito do cabimento limitado e excepcional da revisão contratual.

O Código Civil prevê a possibilidade de o contrato ser resolvido ou modificado em razão de alterações fáticas relevantes e imprevisíveis que tornem a execução do pacto excessivamente onerosa para uma das partes, nos art. 478, 479 e 480.

Explica o jurista Carlos Alberto Bittar que a teoria da imprevisão contemplada pelo Código Civil pela Teoria da onerosidade excessiva é a “radical modificação do estado de fato do momento da contratação (base objetiva do negócio) determinada por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, dos quais decorra onerosidade excessiva no cumprimento da obrigação e, assim, a possibilidade de revisão contratual”.

Nesse sentido, são três os requisitos para aplicação da onerosidade excessiva: (i) contratos de execução continua e diferida no tempo, tais como os contratos locatícios comerciais; (ii) alteração substancial da situação fática subjacente ao contrato em razão de circunstâncias extraordinárias, imprevistas e imprevisíveis, tal como a ocorrência de uma pandemia a causar o fechamento total dos estabelecimentos comerciais; (iii) onerosidade excessiva a um dos contratantes, assim como os locatários que necessitam despender elevadas montas para satisfação de suas obrigações perante fornecedores, funcionários e locador, sem, entretanto, terem receita suficiente para fazer frente a esse passivo, em razão da impossibilidade de exercerem sua atividade comercial.

Embora o locatário excessivamente onerado tenha direito à resolução, seu concreto exercício representará, uma via demasiadamente prejudicial aos contratantes se o contrato ainda puder ser reajustado de modo a se recuperar o equilíbrio contratual originário, considerando a situação fática atual ⎼ excepcional ⎼ de alteração substancial do poder econômico do contratante.

Assim, considerando a legislação aplicável supramencionada, o Juízo, diante do pleito revisional, para além de observar a garantia da autonomia privada e da liberdade contratual, deve promover a efetiva defesa da concorrência, da liberdade econômica, da função social do contrato a fim de evitar desequilíbrios excessivos de uma parte em detrimento da outra, em consonância com as diretrizes estabelecidas pela Constituição Federal (art. 170) e pela Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019).

Ademais, incumbe ao Juízo ponderar os efeitos práticos da decisão (art. 20 do Decreto Lei 4.567/1942 – Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), em especial os impactos econômico-financeiros para a sustentabilidade do exercício da atividade econômica desenvolvida pelo empreendimento comercial locatário, bem como aos outros milhares de contratos locatícios que indiretamente seriam afetados pela decisão, e o efeito em cadeia que a negativa da revisão pode implicar, considerando a situação fática sem precedentes que afeta o setor.

No mais, insta destacar que a revisão contratual, ante os efeitos da pandemia à atividade empresarial, somente será cabível nas hipóteses em que o contrato não tenha previamente alocado referido risco superveniente e imprevisível a qualquer das partes, conforme preceitua a parte final do art. 393 do Código Civil, caso em que deve ser observado a disposição contratual pelos contratantes, consoante disposição do art. 421-A, inciso II, do Código Civil.

Destarte, ainda que não haja disposição expressa acerca do cabimento de revisão contratual dos contratos locatícios comerciais, por aplicação subsidiária do Código Civil, é possível a aplicação da teoria da imprevisão, pela latente onerosidade excessiva decorrente da superveniência de fato imprevisível, a justificar excepcionalmente a revisão judicial, em observância não somente ao Código Civil, como a Constituição Federal, a Lei de Liberdade Econômica e a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

Por fim, sem prejuízo de todo o exposto, previamente ao ajuizamento de qualquer ação, em observância à boa-fé objetiva, inerente às relações contratuais, é salutar a importância que o locatário realize o contato prévio com o locador, de preferência por notificação extrajudicial, a fim de informar a situação econômico-financeira de seu empreendimento e indicar proposta razoável e proporcional, em prestígio ao equilíbrio contratual.

 

Artigo originalmente publicado no Estadão, na coluna de Fausto Macedo, em 03.04.2020.