por Joaquim Augusto Melo de Queiroz

Retomando a análise iniciada na parte 1 deste artigo acerca dos reflexos da Lei n. 14.133/2021 sobre o setor farmacêutico, serão abordadas as demais questões polêmicas e práticas nas licitações e contratos administrativos deste segmento.

 

  1. Inexigibilidade de licitação e inviabilidade de competição

A inexigibilidade de licitação é um tema de alta octanagem para o setor e deflagrador de grande celeuma no mercado farmacêutico em um passado recente. A Lei n.º 14.133/2021 não cuidou de delinear com precisão o conceito de inviabilidade de competição apto a impor a inexigibilidade de licitação (art. 74). Em seus incisos é apresentado rol exemplificativo de hipóteses que conduziriam à inviabilidade de competição, mas não há definição legal do conceito.

Nos fornecimentos de medicamentos, via de regra, a inviabilidade de competição funda-se na existência de fabricante único e/ou de seu distribuidor exclusivo. Contudo, há alguns anos, o Ministério da Saúde promoveu compras de medicamentos órfãos (destinados ao tratamento de doenças raras) em que vilipendiou a existência de fabricantes únicos, e, portanto, a sua condição de fornecedores exclusivos. Permitiu-se a contratação de supostos distribuidores que não reuniam os predicados regulatórios para tanto e que não figuravam como distribuidores credenciados pelos fabricantes. O tema é extremamente sensível e merece exame mais cuidadoso pela Administração Pública e pelos órgãos de controle.

 

  1. Dispensa de licitação para aquisição de medicamentos para o tratamento de doenças raras

O art. 75, inciso IV, alínea ‘m’ da Lei n.º 14.133/2021 instituiu nova hipótese de dispensa de licitação, nos casos de aquisição de medicamentos destinados exclusivamente ao tratamento de doenças raras, assim definidas pelo Ministério da Saúde. A nova regra é controversa, a despeito da sua louvável intenção de garantir a continuidade do fornecimento destes medicamentos aos pacientes.

A primeira crítica tecida escora-se na subversão do próprio regramento da lei nos casos em que há inviabilidade de competição. Isso porque a inviabilidade de competição atrairia o caráter impositivo da inexigibilidade, pela sua própria antecedência lógica em relação à dispensa. A experiência prática inclusive confirma a incongruência do novo dispositivo. Com efeito, observou-se que o Ministério da Saúde ora opta por formalizar a aquisição direta do medicamento por inexigibilidade de licitação, ora performa a compra por meio de dispensa (invocando a situação de urgência preconizada pelo inciso IV do art. 24 da Lei n.º 8.666/1993).

A nova regra parece, portanto, ter sido desenhada para tentar conferir legitimidade a essa prática recorrente do Ministério da Saúde: a de utilizar a dispensa de licitação para deturpar o contexto de efetiva urgência. O expediente merece censura por não se amoldar ao dever de planejamento imanente à Administração Pública, o que deveria conduzir à estruturação orgânica de aquisições periódicas, com a antecedência necessária, justamente para assegurar o fornecimento ininterrupto desses medicamentos e a continuidade do tratamento terapêutico. Nos casos de inviabilidade de competição, tônica geralmente presente em relação aos medicamentos órfãos, incumbiria à Administração Pública organizar-se para que as aquisições fossem realizadas por inexigibilidade de licitação, de modo sistemático.

A nova norma também parece embutir um objetivo transverso, guiado a obter a blindagem do agente público. Ao validar-se a aquisição por dispensa de licitação (mesmo nos casos em que ela deveria ocorrer por inexigibilidade), o intuito velado parece ser contornar eventuais questionamentos de órgãos de controle sobre a efetiva configuração da inviabilidade de competição. Desse modo, a conduta do agente público estaria salvaguardada de eventual escrutínio dos órgãos de controle.

 

  1. Direito do fornecedor à extinção do contrato

Calvário vivido pela indústria farmacêutica, especialmente nos últimos 5 anos, decorre dos constantes atrasos da Administração Pública em quitar os pagamentos devidos.

A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos buscou endereçar esse problema ao reduzir de 3 para 2 meses o prazo máximo permitido para o atraso nos pagamentos (art. 137, § 2°, inciso IV). Estabeleceu-se, ainda, de forma clara, que o prazo deverá ser contado da data de emissão da nota fiscal. Superado este prazo, a empresa poderá legitimamente pleitear a extinção do contrato.

Embora a inovação seja positiva, a sua operacionalização ainda poderá padecer de maiores entraves. Na eventualidade de a Administração não efetuar o pagamento devido em prazo superior a dois meses, o fornecedor não estará automaticamente autorizado a encerrar o contrato. Em realidade, ainda dependerá de uma decisão formal para obter a liberação do seu vínculo contratual. A Lei n.º 14.133/2021 explicitou agora que essa decisão poderá ser tanto judicial quanto arbitral (em decorrência de cláusula compromissória ou compromisso arbitral), o que não chega a ser uma novidade, sobretudo após o advento da Lei n.º 13.129/2015.

 

  1. Ordem cronológica de pagamentos e responsabilização do agente público

O art. 141 da Lei n.º 14.133/2021 trouxe originalidade no regramento sobre os efeitos da inobservância à ordem cronológica de pagamentos. Deve a Administração Pública observar a ordem cronológica dos pagamentos, salvo em situações extraordinárias, agora expressamente arroladas nos incisos do § 1° deste dispositivo. A alteração da ordem cronológica ainda deverá ser comunicada ao órgão de controle interno e ao tribunal de contas competente, o que poderá refrear impulsos direcionados ao favorecimento de determinados credores. Há ainda enunciado específico (§ 2° do art. 141) sobre a apuração de responsabilidade do agente em caso de inobservância imotivada da ordem cronológica1, o que vem em boa hora.

De fato, a penúria financeira de diversos entes federativos, assumindo obrigações para além de sua capacidade orçamentária, produziu uma conjuntura de aguda crise em desfavor dos fornecedores de medicamentos. Estas empresas, não raro, são forçadas a continuar a entregar seus produtos (de caráter essencial) sem qualquer contrapartida financeira. Nesse contexto, a nova norma é benfazeja, oportuna e deve ser exaltada. Com efeito, deve ser saudada a concepção de mecanismos que evitem expedientes para obstruir a ordem cronológica de pagamentos.

 

  1. Portal nacional de contratações públicas

A criação do PNCP (Portal Nacional de Contratações Públicas) encerra outra novidade de eco para a indústria farmacêutica (art. 174). Grosso modo, trata-se de uma plataforma eletrônica (recentemente lançada pelo Ministério da Economia) na qual serão compiladas informações sobre os planos de contratação anuais, os avisos para contratação direta, os editais de licitação e seus anexos, as atas de registro de preços, os contratos e respectivos termos aditivos, as notas fiscais eletrônicas etc. A nova lei prevê que o PNCP deverá oferecer banco de preços em saúde, o que se imagina será regulamentado de acordo com o Banco de Preços em Saúde já existente2. A relevância do tema advém das diligências usualmente realizadas por gestores para a aferição de preços de medicamentos. Caso se concretize essa uniformização de dados, as práticas de concessão de descontos específicos em determinadas conjunturas regionais deverão ser avaliadas com cautela, especialmente em um cenário de possibilidade de adesão a atas de registro de preços por outros órgãos3.

 

  1. Carta de solidariedade do fabricante

A possibilidade de exigência de apresentação de carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor, passou a ser regulada de modo expresso pelo art. 41, inciso IV.

O tema ensejava acalorados debates diante da inexistência de preceito específico nesse sentido na Lei n.º 8.666/1993 e na Lei 10.520/2002. O Tribunal de Contas da União e o Supremo Tribunal Federal repeliam esta exigência, sob o fundamento de que frustrava o caráter competitivo da disputa. Especificamente em relação ao setor farmacêutico, a discussão se tornava mais renhida pelas disposições antes constantes no art. 5°, § 3°, da Portaria n.º 2.814/1998, do Ministério da Saúde4. Diante do advento da Lei n.º 14.133/2021 é possível que este dispositivo venha a ser declarado inconstitucional.

 

  1. Redução do prazo mínimo para a apresentação de propostas e lances

Por fim, o § 1° do art. 55 preceitua que os prazos mínimos para a apresentação de propostas e lances poderão, mediante decisão fundamentada, ser reduzidos até a metade nas licitações realizadas pelo Ministério da Saúde, no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde).

Como se observa, os efeitos projetados pela Lei.º 14.133/2021 sobre as licitações e contratos administrativos da indústria farmacêutica são significativos. Existem inovações úteis, oportunidades a serem exploradas e pontos sensíveis que demandarão atenção redobrada das empresas do setor.

1 O que poderá ensejar interpretações divergentes sobre a extensão do preceito, caso a motivação seja meramente genérica e dissociada de fundamentos efetivamente legítimos.

2 O Banco de Preços em Saúde – BPS é um sistema desenvolvido pelo Ministério da Saúde e se destina ao registro e à consulta de informações de compras de medicamentos e produtos para a saúde realizadas por instituições públicas e privadas. A Resolução n.º 18, de 20 de junho de 2017, da Comissão Intergestores Tripartite, já tornava obrigatório o envio das informações necessárias à alimentação do Banco de Preços em Saúde – BPS pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

3 Vale observar, nesse sentido, a possibilidade inscrita no § 7° do art. 86, o qual permite a adesão à ata de registro de preços gerenciada pelo Ministério da Saúde, por órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal, para aquisição emergencial de medicamentos e material de consumo médico-hospitalar, sem o limite estabelecido no § 5° (dobro do quantitativo de cada item registrado na ata de registro de preços).

4 O Supremo Tribunal Federal havia apreciado essa questão em decisão liminar proferida na ADI 4105. O dispositivo foi então revogado pela Portaria 1.167/2012, do Ministério da Saúde, o que ensejou a perda do objeto da ADI.

Artigo originalmente publicado na Coluna Licitações e Contratos, no Portal da Infra, em 23.08.2021.